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E se a literatura não existisse?

Professor da Unifesp afirma que, se a literatura não existisse, a sociedade seria composta por pessoas solitárias e egoístas

O dinamismo do mundo atual compromete nossa forma de ser e agir? Com tanta falta de tempo, será que estamos perdendo algo importante da vida? De que forma poderíamos evoluir como seres humanos? Segundo o professor Rafael Ruiz da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), respostas para essas e outras questões relacionadas a nossa existência podem ser encontradas na literatura. O docente, que tratou sobre o tema na última edição do Ciclo de Palestras “Química às 16” do Instituto de Química de São Carlos (IQSC) da USP, concedeu entrevista exclusiva sobre o assunto. Confira, abaixo, o bate-papo na íntegra.

IQSC: Quais benefícios que a literatura trouxe e/ou traz para a sociedade você destacaria como sendo os mais importantes até hoje? Por que?

Rafael: A Literatura, pelo menos a boa literatura, é sempre revolucionária e libertadora. Não acredito que seja necessário fazer “literatura engajada” ou “literatura política”. Aliás, penso que essa é uma das formas mais tristes de instrumentalizar e rebaixar a Literatura. Uma boa obra sempre nos força a repensar a nossa vida, as nossas circunstâncias, as nossas motivações. Sempre nos faz pensar. A Literatura sempre é, como gosto de dizer, um sinal de alerta, um amarelo ou um vermelho no nosso dia a dia que nos grita: pare e pense, não fique nessa correria à toa. E quando nos permitimos parar e pensar e nos deixamos surpreender pela Literatura, então nos abrimos à possibilidade de uma mudança significativa na nossa vida e, portanto, na nossa sociedade.

IQSC: Como começou sua relação com a literatura e o que mais te encanta na área?

Rafael: Começou quando fazia colegial em Sevilla, na Espanha, com um professor apaixonado pela Literatura e que, em lugar de pedir fichamentos e resumos, lia para nós obras clássicas e fazia os seus comentários e, o que mais me surpreendeu, pedia para que nós também falássemos o que tínhamos achado ao ouvir aqueles textos. Foi mágico. E acho que foi isso que me encantou. O poder da palavra! A palavra escrita de um bom autor penetra na alma e atinge o mais profundo de nós.

IQSC: Quais são as suas referências literárias e de que forma elas podem ser utilizadas como ferramentas de reflexão? Poderia nos dar algum exemplo?

Rafael: Gosto de Dostoiévski e de Tolstói. Gosto da forma que tratam isso que é, de certa forma inabarcável, e que chamamos de “interioridade” ou “intimidade” e que, acredito, estarmos cada vez mais longe de conhecer. Ambos sempre me ajudaram e me ajudam a entrar em mim mesmo, a me conhecer e, na medida em que isso é possível, a conhecer também os outros. Não naquilo que é externo, mas na sua profundidade.

Dentre os modernos, gosto de Tolkien, do Senhor dos Anéis e da sua intuição de que precisávamos – e acredito que foi isso que ele tentou – de um novo mito fundador para poder encontrar sentido nas nossas vidas no mundo contemporâneo. E gosto de Susanna Tamaro. Suas obras e seus textos têm a força do vivo e do real. E isso, hoje, faz toda a diferença. Estamos ficando muito confusos com tanto mundo virtual, com tanto avatar e selfies.

Na Unifesp, no curso de Medicina, organizo junto com meu colega Dante Gallian o que chamamos de “Laboratório de Humanidades” e é uma experiência única. Um grupo de vinte ou trinta alunos e profissionais da Saúde, discutindo durante um semestre sobre Crime e Castigo, O idiota, Ana Karenina, A morte de Ivan Ilitch, Odisseia, O retrato de Dorian Gray. No site você pode ver os depoimentos de muitos deles sobre como a Literatura ajuda na reflexão.

IQSC: Como você avalia o atual cenário científico de estudos relacionados à literatura no Brasil? Estamos em um bom estágio?

Rafael: Acredito que sim. Há muita coisa boa sendo escrita e publicada nas Universidades públicas e por estudiosos, mas tenho receio de que esse tipo de coisa tenha produzido um “estado de espírito” na sociedade que acabou levando as pessoas a pensarem que Literatura é coisa de especialista, de que não dá, para o homem ou a mulher comum, enfrentarem obras clássicas. A Literatura sempre foi escrita para o povo. A boa Literatura aparecia, na maior parte das vezes, nos jornais e era aguardada com ansiedade. Os textos dos autores clássicos mexiam com as pessoas diretamente, sem necessidades de críticas, análises e estudos especializados. Não digo que isso não seja bom e necessário. O que estou dizendo é que a Literatura não é feita nem escrita para os especialistas, mas para todos. Todos podemos deixar-nos surpreender pelos irmãos Karamazov, ou pela Elegância do Ouriço, de Muriel Barbery, para citar uma autora atual.

IQSC: Como você imagina que a sociedade seria se não existisse a literatura?

Rafael: É só ler A História sem Fim, de Michel Ende. Essa é a trama do livro. Surpreendente e apaixonante. Ou Fahrenheit 451, de Ray Badbury. Seria uma sociedade onde as pessoas seriam muito solitárias e egoístas, mesmo vivendo todas muito juntas, e onde os sentimentos seriam quase inexistentes. Uma sociedade de surdos-mudos afetivos. Acredito que estamos caminhando nessa direção. E não percebemos nada disso.

IQSC: Na sua opinião, quais elementos são primordiais para que as pessoas ajam verdadeiramente como bons seres humanos? Como a literatura pode auxiliar nesse processo?

Rafael: Essa seria uma resposta muito longa, mas, nos tempos que correm, nesses nossos tempos atuais, acredito que é preciso aprender com Ulisses, ou com Aliocha ou o Príncipe Miskin, ou, então, com Gandalf e Galadriel. É preciso aprender a ter misericórdia e compaixão. É preciso saber relevar, não dar tanta importância aos erros, saber passar por cima dos furos dos outros. É preciso, antes de mais nada, saber ter tempo para ouvir, ouvir mesmo, até o fim, ouvir tudo aquilo que o outro quer nos dizer e nos comunicar. Penso que a velocidade do Twitter, do Instagram ou do Facebook estão encurtando o nosso tempo e a nossa paciência. Não sabemos mais ter tempo para ouvir ou, como diz Daniel Pennac, em Como um romance, não sabemos mais ter tempo para ler nem para amar. E esse tempo é sempre um tempo roubado. Roubado à obrigação de viver. A Literatura ensina a ter e dar tempo ao outro. Isso é que nos torna mais humanos. E quando não é assim, infelizmente acredito que chegamos ao que tristemente encontramos hoje: intolerância, ódio e desqualificação. Nada disso nos torna melhores seres humanos.

IQSC: Há espaço para a literatura em todas as áreas de nossas vidas? Há rejeição ou má utilização dela em algum campo?

Rafael: Não sei como responder a isso. Acho que não se trata de “espaço em todas as áreas”. A nossa vida é única, ela não deveria ser fragmentada, nem “espacializada” e, muito menos, não deveria ser “setorializada” ou dividida em papéis. Se houver algum espaço onde possa entrar a Literatura será no meu eu interior e, a partir daí, ela se comunica com tudo da minha vida. A Literatura me afeta, me modifica e, por isso, afeta e modifica as diferentes áreas da minha vida.

Se é possível utilizá-la mal? Sim. É claro. A Literatura é uma arma perigosa. Ela pode manipular sentimentos, emoções e pensamentos. Ela pode influenciar a cometer coisas horríveis como se fossem muito boas. Ela pode carregar os homens e as mulheres até “O coração das trevas”, como diria Joseph Conrad. Isso também é humano, muito humano, aliás. Mas ela também, na minha opinião e seguindo Dostoiévsky, poderá nos salvar. De que? Como diria Shakespeare, do inverno das nossas desesperanças.

IQSC: Como quebrar velhos paradigmas e preconceitos como, por exemplo, de que a área de humanidades supostamente não traria retornos palpáveis e imediatos à sociedade?

Rafael: Talvez a resposta não seja a esperada, mas é que simplesmente a Literatura não traz mesmo retornos palpáveis e imediatos. A Literatura trabalha na longa duração. Ela mexe naquilo que há de mais profundo em nós. Acho que o primeiro paradigma que devemos quebrar é esse: por que é que ainda insistimos em encontrar soluções rápidas e imediatas? Isso é falso. A promessa da “Modernidade” de que a técnica e o progresso seriam imediatos e eficazes já se comprovou falsa. Nada é assim com o homem. Há um tempo humano, um tempo próprio do homem e da mulher que não é mesmo esse tempo medido pelo relógio ou pela internet online. Tudo tem o seu tempo. Cada pessoa tem o seu próprio tempo. E a Literatura ensina, a quem quiser se deixar ensinar, a conhecer esse tempo de cada um. Gosto de lembrar algo que é repetitivo na Odisseia e que, de alguma forma, é “fundante” na nossa sociedade, vamos chamar de “ibérica”. Sempre que Ulisses chega a algum lugar, a uma nova ilha ou um novo povo, convidam-no a sentar, oferecem-lhe comida, bebida, água e vinho… e lhe dizem: senta, come, bebe e, quando estiveres refeito, conta-nos a tua história: quem és, de onde vens e por que estás aqui. Não é maravilhoso isto? Esse é o tempo humano. O tempo em que se pode sentar, comer e falar com os amigos sem pressa nenhuma, sem resumir as ideias, sem reduzi-las a cinco ou seis palavras chaves. Parece-me que esse seria um bom paradigma a ser quebrado.

Entrevista: Henrique Fontes – Assessoria de Comunicação do IQSC/USP

 

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