No conto “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”, Rubem Fonseca apresenta ao leitor a personagem Augusto, sujeito que ganhou na loteria e, ao invés de investir o dinheiro em bens materiais, resolve se dedicar integralmente à escrita. Para concretizar seus planos, torna-se andarilho. Ele explica que, assim, pretende colher matéria-prima para a composição de seu livro, que terá como tema as ruas da capital carioca. Em sua opinião, quando andamos de carro ou ônibus, não notamos os detalhes que compõem a arquitetura da urbe nem a massa de desvalidos que habita suas calçadas.
Eduardo pensou nessa narrativa ao terminar de ler a notícia sobre o aumento no preço dos combustíveis. Há algum tempo, vinha cogitando usar menos o carro e só tirá-lo da garagem quando necessário. Questão de economia e de ajuda na preservação do meio ambiente. De sanidade mental também, pois o trânsito de Araraquara não é mais para iniciantes. Eduardo sente seu humor se alterar logo no primeiro cruzamento. Buzinas, conversões sem o acionamento de seta, xingamentos, pequenas colisões que geram grandes confusões, enfim, é o caos.
Mês passado, na Avenida Luiz Alberto, Daniel, amigo de Eduardo, envolveu-se numa ocorrência com um pedestre. Com a consciência ligada no modo automático, ele seguia para o trabalho em meio ao intenso fluxo de veículos peculiar ao horário da manhã naquela região. Até captou com sua visão periférica o senhor que se aproximava do meio-fio, mas não foi o suficiente para que pudesse desviar o carro do homem que, sem aviso prévio, entrou em seu caminho. Resultado: para-choque direito amassado, para-brisa trincado, retrovisor desmontado, fêmur quebrado, boletim de ocorrência e, de brinde, uma foto no site do jornal da cidade, com comentários ofensivos de haters reacionários, pessoas que habitualmente não leem notícias, mas apenas manchetes.
Foi mais um motivo para Eduardo utilizar mais suas pernas e menos o acelerador. Aquele tipo de situação poderia muito bem ter acontecido com ele, um distraído assumido, principalmente quando está ao volante. “É Deus que olha”, diz sua mãe. Eduardo resolveu, então, aderir a uma nova rotina.
Rotina. Taí uma palavrinha chata, que pressupõe coisas quadradas e imutáveis. Mas o fato é que Eduardo gosta de acordar cedo, tomar café, ir caminhando até o centro e comprar seu jornal na banca. Fica feliz por saber que ainda existam tantas delas no centro araraquarense, mesmo com a inesgotável quantidade de fontes informativas disponibilizada na internet. Mas, poxa vida, ler no jornal de papel é muito melhor, ainda mais para ele que, estando na frente do computador, não consegue se concentrar. Abre uma aba atrás da outra sem que consiga ler nada.
Depois de comprar a edição do dia, continua sua via sacra até a biblioteca municipal, esse local tão sagrado. Uma vez ali, Eduardo tem a sensação de estar protegido das redes sociais, do trânsito infernal, dos pedestres que se jogam na frente dos carros e do aumento de preço do que quer que seja. Quando termina de ler, almoça num dos restaurantes das redondezas e vai dar aula de literatura para alunos que odeiam estudá-la.
No final do dia, até consegue sorrir depois de verificar que, mais uma vez, seu carro ficou na garagem e ele não contribuiu para que os empresários arrecadassem mais dinheiro. Sente-se como o Augusto de “A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro”: anda na contramão, mas não pode ser multado. Um tipo de protesto anônimo e silencioso, sem fazer estardalhaço na timeline. Falando nisso, há dias que não acessa seu perfil no Facebook. Há dias que seu estômago não dói.