InícioblogDa ficção para a presidência da República

Da ficção para a presidência da República

“Qual é o texto literário ao qual vocês se referem quando precisam refletir sobre o nosso momento político?”

1. No Twitter, Juliana de Albuquerque, colunista da Folha de S. Paulo, perguntou a seus seguidores: “Qual é o texto literário ao qual vocês se referem quando precisam refletir sobre o nosso momento político?” Na enxurrada de respostas, marcaram presença Orwell, Camus, Vargas Llosa, William Golding, Houellebecq, Dostoievski, Thomas Mann, Stefan Zweig e, claro, o profeta brasileiro do apocalipse, Rubem Fonseca.

2. Meu eu-lírico da rede social do passarinho, @murilunk, Jackie Brown como imagem de perfil, escreveu que tem pensado bastante não em narrativas fonsequianas específicas, mas em personagens. Exemplo: Vilela, detetive e escritor que protagoniza o conto “A coleira do cão” e o romance O caso Morel. Quando se vê diante de um enigma de difícil solução, ele tende a recorrer ao método da tortura e da execução de gente pobre em aterros sanitários.

3. O jornalista Alvaro Costa e Silva elegeu o conto “Passeio noturno”, história de um homem rico que, após cansativo dia de trabalho, para aliviar o stress, sai com seu carro possante em busca de alguma vítima (de preferência mulher) a quem possa atropelar.

4. “Passeio noturno” foi a primeira coisa que li de Fonseca. Lembro-me bem da ocasião. Não era exatamente um momento para a fruição de leitura. Com 17 anos, eu fazia uma prova de transferência de escolas no meio do ano. A tarefa era escrever uma possível continuação para a história, atentando para a norma culta da linguagem e etc. Até me esqueci de que fazia um exame, tamanho o choque causado por aquele narrador em primeira pessoa que relatava de maneira impassível o modo como matava desconhecidos. Em um de seus diários, Ricardo Piglia diz que a melhor leitura não é a feita em voz alta, mas a silenciosa e solitária. Somente assim, segundo ele, é possível estar devidamente imerso no texto. Naquele ambiente isolado (eu era o único na sala de aula), ao sentir a voz fria e metálica daquele homem desprovido de qualquer humanidade ressoando em meus ouvidos, pude comprovar a teoria de Piglia.

5. Hoje, passados dezesseis anos desde aquela prova, li e reli a obra do autor de Agosto. Tornei-me tão obcecado por suas histórias que as elegi como objeto de pesquisa para um mestrado já concluído e um doutorado recém-começado. Percorrendo seus livros, descobre-se que Rubem Fonseca criou um elenco de personagens abjetos. Vilela e o motorista de “Passeio noturno”, no que diz respeito a suas atitudes, talvez sejam os piores desse time. O que nunca passou pela minha cabeça é que chegaria o dia em que eles sairiam da ficção e seriam eleitos presidentes da República.

Luis Antônio
Luis Antônio
Jornalista. Formado em Ciências Sociais e Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Estudos Literários. Apresentador e editor do Jornal da Morada, da Rádio Morada FM 98,1
Notícias relacionadas
Sair da versão mobile