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Um lugar de ancoragem

"Estive prestes a entrar para o time dos que deixam de escrever. Meu último texto é de novembro. [...] Com tanta coisa ruim acontecendo lá fora, o exercício do bate-papo descontraído parecia uma ofensa."

Digitei “glaxo de hernán ronsino” na barra de buscas do Google. Estava à procura de artigos e resenhas sobre a novela do escritor argentino, western narrado por quatro personagens (Flaco Vardemann, Bicho Souza, Miguelito Barrios e Folcada) que dão suas versões sobre a mesma história de traição. Cada um deles está em pontos diferentes de uma linha temporal encaixada entre 1959 e 1984. Na Argentina, a obra foi lançada em 2009. No Brasil, a Editora 34 publicou em 2017, com tradução de Livia Deorsola.

Apertei a tecla enter e o Google levou 0,46 segundos para encontrar aproximadamente 26.800 resultados. Olhei os que estavam nas três primeiras levas. A maioria dizia respeito a lojas virtuais que tinham o livro em estoque. Havia poucos links que levavam a artigos sobre a narrativa. Entre eles, uma entrevista realizada por Ubiratan Brasil com Hernán Ronsino no Estado de S. Paulo, resenhas de Sylvia Colombo e Joca Reiners Terron na Folha de S. Paulo e notas de Damián Tabarovsky traduzidas por Paulo Werneck na revista Quatro Cinco Um. Todos os textos ressaltavam as influências de Ronsino (Juan José Saer, Roberto Arlt, Ricardo Piglia) e o emprego de uma sintaxe mínima e precisa na condução do enredo, estética conectada a uma violência reprimida e lacunar que explode em raros e marcantes momentos.

Além dessas contribuições publicadas em veículos da grande mídia, apareceram postagens de blogs independentes. Na plataforma Medium, Wibsson fala sobre a terra que invade os estabelecimentos do pueblo, poeira levantada pela obra que troca a velha ferrovia por asfalto, representando a passagem do tempo que devora os homens e seus legados pecaminosos. Em sua página, Milton Ribeiro afirma que os quatro narradores envolvidos na trama protagonizam um faroeste, gênero de filmes que os aproxima. Já Iuri Müller, no blog Calle Soriano, destaca o fio narrativo de Operação Massacre, clássico da não-ficção sul-americana escrito por Rodolfo Walsh que deu origem à história de Ronsino (a epígrafe de Glaxo, aliás, foi retirada do livro de Walsh).

O que leva pessoas como Wibsson, Ribeiro e Müller a tomar a decisão de publicar textos na internet de maneira independente é algo que me interessa. Digo isso porque comecei com algo parecido há mais ou menos dez anos, quando decidi fundar meu primeiro blog. Você não recebe nada por caractere digitado, mas, ainda assim, mesmo precisando acordar cedo para cumprir a função que realmente lhe dá dinheiro, permanece alerta até de madrugada, maquinando frases que poucos leem. É o tipo de atitude que dá razão aos questionamentos que Ricardo Piglia escreveu em um de seus diários: “Por que nos dedicamos a escrever, afinal? Seguimos nessa trilha, por qual motivo? […] em qualquer McDonald’s da cidade tem um trouxa que, apesar de tudo, quer escrever… […] Um escritor se autonomeia e se autopropõe no mercado persa, mas porque ele resolve assumir essa postura?”.

O que também me intriga é o momento em que o autor resolve abandonar sua empreitada. Depois de quase uma centena de postagens que transitam entre a crônica, a resenha e o ensaio, o sujeito simplesmente interrompe o abastecimento daquele endereço eletrônico. Seus poucos e raros seguidores demoram a perceber que já se passaram meses sem que nenhuma linha tenha sido publicada e que as datas das publicações vão ficando cada vez mais distantes do presente. Talvez o proprietário ainda volte lá, não com a intenção de fazer alguma atualização, mas para constatar que escrevia sem medo, apesar da pouca maturidade. Mesmo com alguns erros de concordância ou indesejadas repetições de palavras, a sintaxe era fluida e despretensiosa, provavelmente inspirada por alguma leitura da época.

Estive prestes a entrar para o time dos que deixam de escrever. Meu último texto é de novembro. Gosto de pensar a crônica como uma conversa despretensiosa que, na maioria das vezes, não leva a lugar algum. Mas, nesses três meses inativos, quando me sentava para batucar as letras do teclado, um sentimento de inutilidade tomava conta dos meus dedos. Com tanta coisa ruim acontecendo lá fora, o exercício do bate-papo descontraído parecia uma ofensa. Mais de mil pessoas tendo suas vidas aniquiladas pela peste, um presidente que ignora a letalidade do vírus e estimula a população a evitar a vacina, todos os leitos de UTI e de enfermaria ocupados, sem espaço para a chegada de novos pacientes, amigos e familiares pregando o uso de métodos preventivos sem eficácia comprovada em suas redes sociais, criticando o isolamento social. Como escrever sobre assuntos positivos nesse cenário?

Araraquara, cidade onde moro e nasci, foi obrigada a aderir ao lockdown. Cada um tem suas ferramentas para suportar o confinamento. Pelo modo como as redes sociais e meus vizinhos têm se comportado, parece que o Big Brother Brasil foi eleito o antídoto para o tédio. Não é minha praia. Não mais. Confesso que cheguei a acompanhar as primeiras edições, lá no início da primeira década de 2000. E foi só. Nos anos seguintes, minha paixão pelo cinema aumentou. Desse modo, tenho investido tempo livre no consumo de filmes, principalmente os clássicos que estavam encalhados naquela lista “para ver antes de morrer”. Além deles, fico atento a lançamentos em destaque nos cadernos de cultura dos jornais e em blogs especializados.

Da nova safra, um dos longas que tem recebido mais comentários elogiosos é Nomadland (2020), de Chloé Zhao. Foi ele que escolhi para ver na tarde do último sábado. A história é sobre Fern (Frances McDormand), mulher de 60 anos que resolve entrar em seu trailer e pegar estrada depois do colapso econômico da comunidade rural onde morava em Nevada, nos Estados Unidos, seguido da morte do marido. Assim, passa a levar uma vida errante, ganhando dinheiro com trabalhos temporários, modelo de subsistência deslocado da sociedade convencional. Além da história particular da protagonista, a narrativa aborda a cultura nômade, algo muito recorrente nos Estados Unidos.

Preciso confessar: tenho uma queda por Frances McDormand. Há uma forte tendência de que eu goste de qualquer filme em que ela esteja. Fargo (1996), dos irmão Coen, está entre os que eu chamo de favoritos, e sua interpretação da simplória chefe de polícia Marge Gunderson é definitiva. Há ainda Três anúncios para um crime (2017), de Matin McDonagh, no qual McDormand vive Mildred Hayes, mãe que busca vingança pelo assassinato da filha. Por causa de ambos, recebeu o Oscar de melhor atriz. Mesmo as obras em que ela possui papéis menores são dignas de nota. Enumero as registradas no meu perfil do IMDb: Arizona nunca mais (1987), Mississipi em chamas (1988), Gosto de sangue (1984), As duas faces de um crime (1996).

Por conta de suas perdas e de sua natureza inquieta, Fern é solitária. Para representar essa solidão, McDormand assume, sem exagero caricatural, o aspecto melancólico dos outros andantes que aparecem na história. Muitos não atores trabalham no filme, indivíduos que são nômades fora da ficção. Eles dão depoimentos sobre os motivos que os levaram a abdicar de uma casa e a respeito das vantagens e das dificuldades de viver sem um teto, o que gera uma linguagem documental. A fim de dar forma ao isolamento da protagonista, Chloé Zhao faz tomadas de grandes paisagens e estradas desertas por onde sua heroína caminha ou dirige, aumentando a sensação de que ela está vagando pelo nada, sem a possibilidade de achar um lugar de ancoragem no mundo. Por isso, diretora capta o que há de mais verdadeiro em sua protagonista, sem julgamentos ou excessiva carga de dramaticidade.

Nomadland não serve como tratamento preventivo contra a Covid-19, mas pode ser um instrumento para que reflitamos mais profundamente a respeito do isolamento que fomos obrigados a aceitar. Diz respeito ao que cada um de nós está vivendo, portanto.

 

Luis Antônio
Luis Antônio
Jornalista. Formado em Ciências Sociais e Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Estudos Literários. Apresentador e editor do Jornal da Morada, da Rádio Morada FM 98,1
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