Vivemos tempos politicamente conturbados, para dizer o mínimo. Ânimos se exaltam e muitas bravatas são expelidas sem que se meçam as consequências destes atos.
Pode-se rastrear a origem destas provocações à pessoa do Presidente da República, Sr. Jair Messias Bolsonaro, que desde eleito jamais se deu conta de que chefia o Brasil de todos, e não apenas a parte do país habitada por seus seguidores.
Os “factoides” são criados diuturnamente, desde o dia da posse, onde a narrativa sempre prevalece sobre seus verdadeiros atos. Elegeu-se com um discurso e, dissimuladamente, foi se modificando enquanto exercia o poder, mostrando que todo o seu “liberalismo” e “repúdio à corrupção” era apenas discurso para animar palanques.
Enquanto estávamos apenas nas provocações políticas, que fazem parte do jogo, podíamos ir colocando as falas estapafúrdias na conta da infantilidade e liderança claudicante do presidente. Porém as coisas começaram a tomar um novo rumo quando ele começou a se manifestar contra as instituições democráticas e até mesmo contra o sistema eleitoral com o qual se elegeu.
Quando um presidente se acha no direito de ofender publicamente os chefes dos demais poderes (que deveriam ser harmônicos), a chamar instituições de estado (como as Forças Armadas) como sendo suas e a fazer ameaças contra a realizações de eleições, ele já defenestrou a liturgia do cargo e perdeu o respeito pela Constituição que jurou cumprir. Não se trata mais de pequenos arroubos de tirania, mas verdadeiros crimes de responsabilidade.
Sem nenhuma sutileza, tenta-se criar um clima de desconfiança repetindo-se mentiras exaustivamente, na esperança de que se tornem verdades, ao melhor estilo de Joseph Goebbels, Ministro da Propaganda na Alemanha Nazista.
Jair, que nunca escondeu sua admiração pelo aprendiz de autocrata, Donald J. Trump, busca criar o mesmo clima de incerteza plantado pelo ex-presidente republicano dos EUA, país onde cada estado tem suas regras e ainda há muito voto em papel. Como no Brasil o voto é todo conduzido e auditado eletronicamente, ele sente necessidade de alterar o sistema para que possa gerar cizânia e, com isto, no meio do caos, surgir como um salvador da pátria mesmo que isto enterre a nossa democracia.
Achar que o voto eletrônico não é auditável é pensamento de estultos. O fato da massacrante maioria dos eleitores não entender de informática, criptografia e gerenciamento de sistemas não torna o sistema não auditável, apenas revela ignorância em compreender o assunto. Se tudo nesta vida precisar ser feito de modo que cada pessoa entenda tudo com perfeição, voltaremos à Idade da Pedra. É por isso que um cirurgião não consulta os pacientes na sala de espera sobre como deve proceder na operação, ou um piloto não vai até a classe econômica perguntar sobre como deve voar o avião. São coisas que, às vezes, não compreendemos totalmente, mas sabemos que é preciso estudo e conhecimento para desempenhar a tarefa corretamente. O mesmo vale para sistemas informatizados. Paremos de glorificar a ignorância em nome de uma falsa transparência.
Nosso voto eletrônico está em uso desde a década de 1990. As urnas (e a informática) evoluíram muito desde então. Foram conduzidos inúmeros testes de “hackeamento” do sistema, sem sucesso em situações normais, sem contato físico prolongado com o equipamento. A cada eleição, e a cada teste, os sistemas foram sendo corrigidos e aperfeiçoados, quanto mais usamos a urna, mais confiável ela fica.
Desde que a urna eletrônica foi implantada, os membros da família Bolsonaro foram eleitos em 95% das vezes, só não possuem um resultado perfeito porque Flávio Bolsonaro tentou ser Prefeito do Rio de Janeiro em 2016 e não conseguiu. Dos sete mandatos de Jair Bolsonaro como deputado, cinco deles foram com urnas eletrônicas, inclusive o resultado de deputado mais votado do Rio de Janeiro em 2014. Tantas vitórias com votos eletrônicos, mas no ano que vem haverá fraude. Ah, tá!
Toda essa “lavagem cerebral” diária lança dúvidas infundadas sobre nossa democracia. Parte do eleitorado, que resolveu suspender seu raciocínio crítico para seguir cegamente um ex-deputado do baixo clero, repete as falácias como se fossem verdades absolutas, incentivados por uma ala política que não considera irresponsável explodir o sistema democrático para se manter no poder.
O ápice do absurdo aconteceu no início de julho. O Ministro da defesa, General Walter Souza Braga Netto (num cargo que deveria ser ocupado por um civil) resolveu fazer ameaças ao Presidente da Câmara, Arthur Lira, mesmo sendo este um dos pilares de sustentação do governo, dizendo que caso as eleições não fossem conduzidas da maneira como ele, um absoluto leigo, considera ser a melhor (em alinhamento adulador com o presidente) não haveria eleições em 2022. A reação e repúdio foi forte e generalizada. Claro que houve um desmentido no “oficial”, mas imaginamos como deve ter sido “no paralelo”. O general deve ter dado um belíssimo tiro no próprio pé, pois os políticos se uniram ainda mais contra o tal “voto impresso”. A situação é absurda em tantos níveis que poderíamos ficar horas divagando sobre o assunto. Cabe ressaltar que o Ministério da Defesa não tem nenhuma jurisdição sobre como devem ser conduzidas as eleições.
Com tantas aberrações ocorrendo é fácil imaginar que um Golpe de Estado poderia estar em gestação. Eu mesmo já manifestei este temor no Jornal da Morada. Porém, pensando um pouco fora da caixinha concluí que pode até haver uma tentativa de patetada neste sentido, mas as chances de darem certo é praticamente zero.
Lembremos que o mundo de 2021 é muito diferente do mundo de 1964. Temos o planeta todo envolto numa rede de informações em tempo real, todo mundo sabe de tudo o tempo todo, chega a ser cansativo. Qualquer pessoa com um smartphone carrega num estúdio de TV e uma redação de jornal no bolso. Tudo é documentado o tempo todo.
Para que um golpe florescesse, teria que haver apoio na comunidade internacional (como houve em 1964), apoio econômico interno e externo, acordos comerciais sólidos com países capazes de sustentar nossa balança econômica, fechando os olhos para as arbitrariedades de uma ditadura. Claramente os EUA de hoje são muito diferentes daquele da Guerra Fria, isto para não falar na Comunidade Europeia, que seria uma das vozes mais altas no repúdio internacional. Os países mais ricos do mundo promoveriam sanções econômicas severas ao Brasil. Muitos setores perderiam muito dinheiro, e a equação, mesmo que seja apenas no plano econômico e não no ideológico, não fecharia.
A desconstrução desta possível tentativa de golpe deve começar em casa. Nosso congresso tem a obrigação de cumprir sua função constitucional, fiscalizando e controlando o poder do presidente, bem como nosso judiciário deve, através da lei, lidar com estes “golpistas de botequim” que ameaçam jogar o país numa vala de obscurantismo.
Ao comando das Forças Armadas cabe uma profunda reflexão sobre como sua imagem tem sido desnecessariamente manchada quando alguns poucos elementos resolveram sair da caserna e se aboletar no governo em proveito próprio. A conduta do Exército, Marinha e Aeronáutica tem sido absolutamente exemplar desde a redemocratização, com altos índices de aprovação. Esperamos que tenham aprendido que não vale a pena participar de um “voo de galinha”. Que se fortaleçam como guardiãs da Constituição evitando aventuras fadadas ao fracasso.
É sempre importante lembrar que a democracia de que desfrutamos não caiu do céu. Ela foi conquistada e construída sobre corpos e sangue, tanto da esquerda quanto da direita. Grandes brasileiros devotaram suas vidas a estabelecer um sistema político onde todos tenham voz. Absolutamente ninguém tem o direito de conspurcar esta conquista. Não passarão!