Em sua crônica “Como resistir em tempos brutos”, Eliane Brum cita o método de defesa adotado pelas personagens da saga “Harry Potter” para sobreviver aos dementadores, sujeitos que oprimem e sugam as forças de seus alvos. A fim de se imunizarem, os bruxos comem chocolate, algo que dá prazer e aciona lugares da mente que os inimigos não podem alcançar. É uma dica extremamente valiosa para quem deseja manter o mínimo de sanidade em uma época tão barulhenta.
A escritora menciona o doce preferido de onze em cada dez crianças, mas cabe a cada um abrigar-se no seu “chocolate”, que pode ser a música, o teatro, o cinema, as histórias em quadrinhos, a literatura, o esporte ou qualquer outra atividade. Particularmente, os livros são meu recanto preferido. Cada volume me garante algumas horas de tranquilidade e de ausência da gritaria das redes sociais, bem como dos grupos de WhatsApp, o que significa um cérebro mais oxigenado e um estômago menos dolorido.
Depois de alguns meses de leituras estritamente obrigatórias, desde a semana passada tenho me dado o direito de ler títulos que se enfileiraram no decorrer do ano. Por isso, durante três dias, mergulhei no “Ensaio sobre a cegueira” de José Saramago. Sempre que leio Saramago, acabo dizendo que deveria ler mais Saramago. Depois de adentrar suas histórias, é impossível sair a mesma pessoa.
O narrador nos conta a história da cegueira epidêmica que acomete a toda uma população. Os resultados são os piores possíveis. Dentro de um manicômio utilizado como quarentena, formam-se vários grupos, e um deles resolve tomar o poder. Como preço para liberar a comida, exigem que os outros ajuntamentos lhes cedam as mulheres. Uma cena de estupro coletivo me fez interromper a leitura por algumas horas.
A cegueira não é apenas física. A epígrafe é cirúrgica: “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.” Dizendo o mínimo, é um livro necessário.
Não são apenas leituras como essa que me dão ânimo para seguir em frente. Outras pequenas realizações, que não têm qualquer retorno financeiro, também são parte fundamental desse processo. Esse blog, por exemplo, é uma delas – continuar escrevendo textos que, longe de possuírem a mesma qualidade dos da maravilhosa Eliane (sim, sou fã), bem ou mal, fazem sentido para alguns que se dispõem a lê-los; dar aulas que mexam com alguns alunos que busquem algo além de um bom desempenho conteudístico no vestibular – há alguns meses, depois de falar por duas horas, num sábado de manhã, sobre o “Quarto de despejo” de Carolina Maria de Jesus, um rapaz veio até mim e disse que, a partir daquele momento, começaria a dar mais atenção aos moradores de rua que se misturam à paisagem cinzenta da cidade; ou até mesmo o não planejado livro de contos que publiquei há dois anos e a possibilidade de vislumbrar uma possível nova coletânea.
Esses são os chocolates aos quais recorro depois de encontrar uma suástica nazista esculpida na carteira de uma sala de aula do segundo ano do Ensino Médio.
Sem eles, talvez já tivesse desistido.