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Beleza no ordinário

"Sontag fala sobre a expectativa criada nas primeiras décadas da fotografia, quando se esperava que fotos bonitas fossem visões idealizadas do pôr do sol."

Duas da madrugada. Insone, clico na lupa do Instagram. Pilhas de livros, câmeras analógicas e dribles de Zidane preenchem a tela do celular. No canto inferior direito, vejo uma frase – vive encantado quem vê beleza no ordinário.

A autora do post é fotógrafa. No seu perfil, há registros de casamentos e festas de aniversário. Outro tema recorrente é o café, que aparece em xícaras pequenas e de cores variadas ou dentro de cafeteiras italianas. Legendas que descrevem sentimentos e o valor de certos rituais acompanham as cenas.

Embaixo da lâmpada fraca do abajur, apanho o livro Sobre fotografia, de Susan Sontag. O índice carrega sete títulos. Escolho o segundo deles: “Estados Unidos, visto em fotos, de um ângulo sombrio”. As páginas têm parágrafos grifados e anotações feitas a lápis. Me detenho num trecho em que Sontag fala sobre a expectativa criada nas primeiras décadas da fotografia, quando se esperava que fotos bonitas fossem visões idealizadas do pôr do sol.

Busco em minha memória uma foto de William Klein que, revelada em 1954, mostra três crianças sorridentes. Atrás delas, em pé, um adulto sem rosto, vestindo camisa xadrez. Tem o dobro da altura do trio que ocupa o primeiro plano. Por isso, o recorte decepa sua cabeça. Ainda assim, a mão direita segura um revólver e o apoia contra a têmpora do garoto que está no centro. O menino mantém o corpo virado para a câmera, enquanto a boca se estica e expõe um conjunto de cáries. Os olhos, atraídos pela frieza do aço encostado no crânio, correm para o lado, tentando visualizar a arma.

Vi essa foto pela primeira vez em A câmara clara. Nesse livro, Roland Barthes se ocupa das fotografias que o marcaram. O que chama a atenção do ensaísta francês no instantâneo de Klein são as manchas escuras nos dentes do garoto. Lembro-me também da opinião de um professor, com quem conversei uma vez sobre o mesmo flagrante. Para ele, o que mais impressiona é a atitude das outras crianças – concentradas na lente da máquina, estão alheias ao que ocorre em volta.

Os olhos brancos do menino me desconcertam. A tentativa de ver o 38 posicionado à frente de sua orelha faz desaparecer as pupilas. Resta o tom leitoso do globo ocular. Não é a cor tranquila de um copo de leite e está longe do conforto da imagem de um café fresco descansando em xícara de porcelana. O olhar opaco causado pelo toque da arma funciona como a faixa de luz do fim de tarde que atravessa as cortinas antes do anoitecer.

Olho pela janela. Lá fora, amanhece. Fecho o livro de Sontag e apago a luz.

Luis Antônio
Luis Antônio
Jornalista. Formado em Ciências Sociais e Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Estudos Literários. Apresentador e editor do Jornal da Morada, da Rádio Morada FM 98,1
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