Mentira deslavada, se eu disser que sou grande conhecedor de Nelson Gonçalves. Faz pouco tempo que conheço sua música. Que ele foi um dos responsáveis por minha entrada (como ouvinte) no mundo da MPB, isso, sim, é verdade. Sua voz grave, entoando letras que bem poderiam ter sido escritas por Álvares de Azevedo, é uma boa pedida como acompanhamento de Antarcticas madrugadas a dentro.
Por acaso, descobri que dia 18 de abril é a data em que Nelson faleceu. Durante um zapear de canais televisivos, esbarrei, na Globo News, em um pequeno especial sobre a trajetória do cantor, que, feito um boxeur, travou intensa batalha com a vida.
O caminho percorrido por ele foi acidentado e tortuoso, repleto de nãos ditos por empresários da indústria fonográfica (um deles, ao descobrir que Nelson era gago, acusou-o de não ser dono da voz do EP) e de abuso de tóxicos (ele chegou a cantar para um traficante em troca de cinco gramas de cocaína).
Parte de meu interesse por Nelson Gonçalves vem de uma vertente artística que, a princípio, não possui trilha sonora. Literatura pressupõe-se atividade silenciosa e solitária. Mas as histórias cantadas por Gonçalves bem podem servir de pano de fundo para as vividas pelas personagens criadas por Marçal Aquino, tanto nos contos quanto nos romances.
Depois de assistir à referida reportagem, corri para a estante, em busca do volume Famílias terrivelmente felizes. Ali, há uma narrativa curta bastante emblemática, que releio com certa frequência. O narrador de “Impotências” descreve a existência desprovida de expectativas vivida por seu tio, um homem que nunca ganhou no jogo do bicho, jamais esteve num cinema e sequer realizou seus desejos amorosos. Uma vida sem sentido, compatível com os versos de “Naquela mesa”.
Outro trecho da obra de Marçal em que pareço ouvir a voz de Nelson interpretando “A volta do boêmio” é o protagonizado por Brito e Marlene no romance Cabeça a prêmio. Ele, matador de aluguel, e ela, cafetina, vivem um intenso romance que é destruído pelas desconfianças de um homem educado pelo machismo. Quando se vê sozinho, Brito descobre que nem sempre é necessário levar um tiro de 45 para se sentir à beira da morte. O álcool apresenta-se como único refúgio para tamanho sofrimento.
No último dia 18, completaram-se 20 anos da morte de Gonçalves. Sua voz ainda persiste pela madrugada, fazendo companhia a pessoas tão reais quanto as personagens do universo literário de Marçal Aquino, gente que, segundo palavras do próprio cantor, passam a amar sua música depois do terceiro copo de uísque.