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E se seu filho fosse gay?

'Não aceitar' a orientação sexual do filho é como obrigá-lo a ser destro, quando é canhoto. Não faz sentido algum

Se você é assíduo nas redes sociais, como eu, deve ter assistido a um vídeo que tem sido compartilhado à exaustão mostrando uma “pegadinha” (ou trollagem, na linguagem das redes) que uma família pregou numa mãe e que quase acabou em tragédia. Quando assisti às imagens, elas já tinham sido vistas mais de 10 milhões de vezes em uma página no Facebook e os números não paravam de subir.  Em uma sala de jantar, família se preparando para comer, vemos uma mulher dizendo à filha que o pai da menina acabara de receber uma foto dela pelo celular.  Pelo tom nada amistoso da conversa, entendemos que a imagem é comprometedora.  A mãe fica visivelmente nervosa. A câmera que flagra essa discussão em família parece escondida em uma prateleira.

Na cena seguinte já vemos a família à mesa: pai, mãe e três meninas. A mãe está inquieta, fala alto, parece querer impor um castigo à filha que aparece na tal foto, diz que ela vai ficar três meses sem celular. Se altera, diz que é “para aprender que com essas coisas não se brincam”. O descontrole aumenta e a mulher começa a gritar. Aos poucos entendemos que a tal foto seria da filha do casal beijando outra menina e o “castigo” imposto, o de ficar três meses sem o aparelho. O tom se eleva, o pai tenta contemporizar, sempre debochando, a mãe diz que “não tem preconceito”, mas ameaça “quebrar a menina ao meio” e colocá-la “para fora de casa”. Como é visivelmente ignorada em seus apelos pelo confisco do celular, tenta jogar um dos pratos que estão na mesa do almoço em cima da filha. É contida. Diz que não quer “patifaria dentro de casa”. No auge da insensatez e da cegueira emocional, pega algo que se parece uma faca no chão e parte para cima da filha. O marido tenta desarmá-la e o casal entra em luta corporal. A empregada da família, desesperada, tenta contê-los e o que era uma brincadeira -de péssimo gosto, aliás – quase vira uma tragédia. O vídeo – um soco no estômago de qualquer um que tenha estômago – termina, abruptamente.

As filhas e o pai parecem ter armado toda aquela situação para testar a mulher. Descobri que vídeos gravados para ‘revelar’ à família uma suposta homossexualidade dos filhos são comuns, acredite se quiser (ou veja com seus próprios olhos no You Tube). Vamos fingir que essa cena não foi provocada pela família para tentar entender o que aconteceu ali: uma adolescente quase foi esfaqueada pela mãe, porque se relevou lésbica. Uma mãe quase virou assassina por não aceitar a homossexualidade da filha. Uma família quase foi destruída por causa do preconceito e nós assistimos a isso, na tela do nosso computador, isso é inaceitável, quando terminou o vídeo , eu mesmo fiquei em choque ao ver a reação de uma mãe fazendo isso com seu próprio filho.

“Mas você aceitaria que seu filho fosse gay?”, perguntaram-me uma vez, quando disse que não suportava os comentários homofóbicos que estavam sendo feitos em um almoço de família.

“Se meu filho for gay não há problema algum”, respondi. “Ele sempre será meu filho, sempre será amado e sempre estarei ao lado dele”, completei.

“Ah, não é possível. Eu também não tenho preconceito, mas jamais aceitaria que meu filho fosse gay”, respondeu meu parente.

“O que você faria se ele fosse homossexual?”, estiquei o assunto, que se encerrou em um “não sei, mas não aceitaria”.

Não aceitar que o filho seja gay é como não aceitar que ele seja destro. Canhoto. Loiro. Moreno. Tenha olhos castanhos. Ou azuis. Você pode até obrigá-lo a não usar a mão esquerda em público quando for escrever. Mas ele continuará sendo canhoto, apesar de você. Pode exigir que ele tinja os cabelos de loiro, impor que ele coloque lentes que escondam aquele pigmento em sua íris. Mas seu filho continuará a ser, mesmo contra o seu desejo, canhoto, moreno, de olhos negros. Gay.

Ser gay não é questão de escolha, não é questão de educação ou de falta de educação. Não é doença. E não sou eu quem está dizendo. Desde a década de 70 a comunidade médica é unânime ao afirmar que nenhuma orientação sexual é doença. Todas as entidades de psicologia e psiquiatria do mundo retiraram a homossexualidade da lista de transtornos mentais e emocionais. E agora, em pleno século 21, vemos uma nuvem negra de obscuridade e intolerância pairando novamente sobre nossas cabeças, quando o novo presidente americano se posiciona contra o casamento gay, já aprovado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, e deputados brasileiros ganham cada vez mais espaço na mídia para dizer que ser gay “é falta de porrada”. O resultado disso, podemos ver nesses vídeos, tão populares: mães e pais ameaçando seus filhos, com o amparo da sociedade, que assiste ao horror de camarote, comendo pipoca e contemporizando, afinal “cada pai educa seu filho de um jeito, não temos nada a ver com isso”.

Quando você não aceita seu filho como ele é, um abismo é construído entre vocês. Um muro de Berlim. Ele vai continuar sendo o que é, só que longe de você, afastado de você, com uma mágoa gigante de você, aquela pessoa que jurou amá-lo incondicionalmente. Ele pode até fingir que “mudou” enquanto você finge que acredita que meia dúzia de gritos e ameaças de “tirar o celular” ou “quebrá-lo ao meio” fizeram com que ele se tornasse, finalmente, o filho que você idealizou. E de fingimento em fingimento perdemos a chance de mostrar aos nossos filhos que o amor é um verbo intransitivo, não exige nada em troca, e floresce quando as máscaras caem e mostramos ao outro quem realmente somos, sem medo.

Talvez você saiba que seu filho é gay. O coração de pai  e mãe sempre sabe. Não perca tempo em fazer um vídeo sobre essa descoberta porque o amor sempre dá menos audiência que o ódio. Mas você não precisa de audiência nem de aplausos. Só precisa do seu filho junto a você. E isso você vai ter.

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