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Na perspectiva de Weronika

"Foi por causa desse filme que decidi visitar a Cracóvia. Fiz a viagem de trem, a partir de Hamburgo, na Alemanha. Assim, foi possível ver a transformação das paisagens e dos idiomas, além da arquitetura pesada das primeiras cidades da Polônia."

Através de uma esfera transparente, a soprano Weronika (Irène Jacob) observa um castelo. Dentro do objeto que a polonesa segura entre os dedos, a construção aparece em tamanho reduzido e de cabeça para baixo. Estrelas coloridas orbitam na superfície desse universo microscópico.

A cena que descrevo está em “A dupla vida de Véronique”. Com direção de Krzysztof Kieślowski, a história é sobre duas mulheres que, embora nunca tenham se encontrado, são reflexos perfeitos uma da outra. Além de estabelecer laços intensos entre as protagonistas e de elaborar um desenlace impactante para a narrativa, Kieślowski busca, a todo momento, o recorte perfeito. Weronika analisando o castelo é um bom exemplo disso. Ela força os olhos e procura detalhes, como se reproduzisse o método do diretor polonês.

Foi por causa desse filme que decidi visitar a Cracóvia. Fiz a viagem de trem, a partir de Hamburgo, na Alemanha. Assim, foi possível ver a transformação das paisagens e dos idiomas, além da arquitetura pesada das primeiras cidades da Polônia. O inverno cinzento contribuía para a brutalidade do Leste europeu. Conforme a locomotiva avançava, uma camada branca de gelo ia cobrindo as superfícies de concreto escuro. Era noite e nevava pesado quando desembarquei na estação.

Na manhã seguinte, pensei no conto “As babas do diabo”, de Julio Cortázar. A certa altura, o narrador afirma que não gosta de sair de casa sem a máquina fotográfica, pois seus olhos ficam preguiçosos. Imitando a disposição do personagem de Cortázar, apreendi com minha câmera o máximo que pude em uma cidade que possui nuances múltiplas. Nesse universo, fotografei árvores nuas e solitárias que resistem a temperaturas congelantes, estátuas de olhar severo que parecem caminhar sob o sol e confabular nas sombras, castelos e torres que projetam suas silhuetas contra o céu forrado de nuvens.

Andando pelo centro histórico, lembrei da cena em que Weronika percorre aquele pátio com uma pasta recheada de partituras. Alheia ao combate entre polícia e manifestantes que ocorre no mesmo minuto, esbarra em um dos rebeldes e deixa os papéis caírem no chão. Após recolher as páginas e continuar sua caminhada, vê algo que a paralisa: no meio de um grupo de turistas, está a francesa Véronique, professora de música que fotografa a movimentação na praça. Distraída pelo conflito, ela não percebe que também faz um retrato de sua sósia oculta.

O vento informava que o melhor seria ir para um espaço aquecido. Quando me propunha a voltar ao hotel, vi um bonde antigo que tinha apenas uma passageira. Junto da janela, ela segurava, à frente do olho direito, uma esfera incolor, pela qual me observava. Enquanto o vagão ia embora, não pude deixar de pensar que, aprisionado naquele objeto, eu estava de cabeça para baixo na perspectiva de Weronika.

Luis Antônio
Luis Antônio
Jornalista. Formado em Ciências Sociais e Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Estudos Literários. Apresentador e editor do Jornal da Morada, da Rádio Morada FM 98,1
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