O fim da Fundação para o Remédio Popular, a FURP do Governo do Estado de São Paulo e construída no município de Américo Brasiliense, não deveria pegar ninguém de surpresa, pois o debate sobre a desconstrução da indústria brasileira é exaustivamente conhecido. Atualmente, vivemos o nosso pior momento na produção industrial no Brasil. Desde os anos de 1980 a participação da Indústria de Transformação no Produto Interno Bruto (PIB) cai, de forma vertiginosa, indo de 30% para, hoje, em torno de 10%. Um desastre histórico.
Esse quadro é resultado de anos de financerização de nossa economia pelo liberalismo tupiniquim, uma cópia esquizofrênica e brutalmente selvagem do ideário neoliberal e exaustivamente implementada no Brasil nas últimas décadas. Ao passo que a Política de Científica e Tecnológica brasileira não é tratada sob um olhar de articulação multisetorial, para desenvolvimento econômico e humano, limitando-se, ainda que com algum sucesso, à pesquisa científica.
Pensando, especificamente, a indústria farmacêutica, para se produzir um remédio requer muito investimento por longos períodos. Por isso, em qualquer país que esta indústria é altamente desenvolvida, veremos o Estado como grande indutor em parceria com as universidades e os departamentos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) do setor privado. O papel do aparato estatal não é só financiar, mas também garantir a formação de quadros técnicos-científicos e do próprio mercado consumidor – com muito subsídio direto ou indireto. E isso é exatamente o contrário do que estamos fazendo no Brasil desde os anos de 1990.
Aqui, optamos por não consolidar nossos centros científicos como inovadores – estes sobrevivem mais da ação individual e quase altruísta dos cientistas – e não temos qualquer resquício, no setor de fármacos, de defesa das indústrias realmente nacionais. As importações de remédios, segundo a Federação das Indústrias do Paraná (FIEP), representam 90% do que é necessário pela Indústria Farmacêutica, sendo Alemanha, China e Estados Unidos os principais fornecedores – estes totalizando 48%. Comprovam, também, que os produtos de maior valor agregado e de alta tecnologia são importados da Alemanha, Estados Unidos, Suíça e França, enquanto que os produtos de menor relevância tecnológica são adquiridos junto à China e a Índia. Ou seja, estamos fortalecendo as indústrias nacionais desses países e garantindo os empregos deles. E, por fim, os fármacos produzidos no Brasil se abastecem da indústria química brasileira (química fina), onde a indústria farmacêutica é responsável por apenas 14% de sua produção.
Além do mais, o setor detém forte política de patentes – que visam a proteção daqueles que inventam os medicamentos -, algo justo. Mas a esmagadora maioria dessas patentes já se encontra vencida, o que representa aos países mera política pública de cópia – o que, inclusive, aumentaria a concorrência dos laboratórios para a elaboração de outros produtos e gerando baixa nos preços. Tudo dentro dos marcos legais nacional e internacional e, contraditoriamente, dentro da lógica mercadológica do ideário capitalista. O que nos força a pensar para além da FURP e entender o que realmente está em jogo, já que o setor é oligopolizado, no mundo, onde 9 empresas controlam 40% do mercado e as 15 maiores correspondem por mais de 53%, segundo a FIEP.
No Brasil, os números são alarmantes e inquietantes. O Ministério da Saúde passou a gastar R$ 8,4 bilhões em compra de medicamentos, em 2011, para em 2016, R$ 12,9 bilhões – ainda assim apresentou forte queda, por causa da crise econômica, pois em 2015 gastou R$ 20 bi – dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA). O gasto da população brasileira em medicamentos, segundo a pesquisa Conta-Satélite de Saúde do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2015, totalizou de R$ 307,054 bilhões de reais, equivalente à 1,5% do PIB nacional, mesmo com a política de distribuição gratuita de alguns fármacos.
Em 2019, aprofundando essa nefasta política de compra medicamentos, o Governo Federal anunciou a suspensão de vários contratos com laboratórios públicos de fornecimento de medicamentos, as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), para aumentar a aquisição junto à iniciativa privada. A Associação de Laboratórios Farmacêuticos Oficiais do Brasil (ALFOB) divulgou nota afirmando que foi pega de surpresa e que pretende judicializar a questão.
Com uma postura de desarticulação da política científica e tecnológica e enfraquecimento da indústria nacional, podemos levantar prédios lindos e fazer vários concursos, como o exemplo da FURP de Américo Brasiliense, mas o seu fim já está anunciado há décadas. Assim, essas ações são espetáculos políticos-eleitorais e que, com toda a certeza, atendem à determinadas demandas não expostas publicamente – recuso-me a acreditar que seja por puro desconhecimento dos fatos -, ao custo final de dificultar o acesso, por parte significativa da população, à produtos que podem salvar suas vidas.