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O privilégio Cafarnaum

"Um garoto de mais ou menos 12 anos (ninguém sabe ao certo sua idade), diz que deseja processar os pais por terem concebido sua existência"

Não seria uma resenha crítica, análise que se debruça sobre os pontos fortes e fracos, sobre as falhas e acertos do roteiro, sobre a bem-sucedida ou não atuação do elenco, sobre o efeito catártico fulminante ou pífio.

Talvez fosse mais um texto simples, conjunto de palavras que se preste a comunicar como fui atingido por Cafarnaum, filme libanês dirigido por Nadine Labaki que concorreu ao Oscar de melhor longa estrangeiro neste ano – como se sabe, o vencedor foi o belíssimo Roma, de Alfonso Cuarón.

Comecei a me interessar por essa história mais ou menos no final do ano passado, quando o escritor Marçal Aquino publicou palavras elogiosas a respeito dela em sua conta no Twitter. Segundo ele, foi um dos melhores títulos que viu em 2018.

Sou fã do Marçal escritor, o que acaba fazendo com que eu considere qualquer opinião sua sobre filmes e livros. Quem já leu Cabeça a prêmio e Eu receberia as piores notícias dos seus lindos lábios sabe que o autor nascido em Amparo domina muito bem o manejo de sua “câmera”. Suas influências vão de Peckinpah a Kurosawa, mestres da sétima arte que o guiam na composição de suas novelas quase sempre policiais.

O fato é que durante bom tempo naveguei pela rede em busca de um torrent que pudesse matar minha sede. Nada. A película estava sendo exibida apenas nas capitais. Esperava que talvez o Sesc notasse a importância de trazê-la para terras araraquarenses.

Eis que, na última semana, o guerreiro Cine Lupo anunciou a exibição do filme. Mais do que depressa, eu e mais a incrível soma de meia dúzia de gatos pingados corremos à sala número 1 localizada no shopping que dá nome ao cinema.

Tudo começa no tribunal. Um garoto de mais ou menos 12 anos (ninguém sabe ao certo sua idade), diz que deseja processar os pais por terem concebido sua existência. A partir daí os planos narrativos vão e voltam para o passado, mostrando os motivos que levaram genitores e filho àquela inusitada situação. Pequenas migalhas do que poderia ter acontecido nos são dadas, apesar de logo de início já sabermos o crime do menino Zain (Zain Al Rafeea).

Nesse vai e vem temporal, há panorâmicas e mergulhos que dão ideia do absurdo repleto de ruídos em que libaneses, imigrantes ilegais e principalmente crianças vivem. Em Cafarnaum, não há infância. Concreto, lixo, moscas e poeira, tudo está amontoado ao redor de meninas que são vendidas como esposas bem antes de atingirem a idade adulta. Enquanto espectador, fui tragado por aquele turbilhão de informações. Não há como não se sentir parte daquele caos arquitetônico repleto de poluição sonora e visual. Correndo o risco de me equivocar, escrevo palavras que Antonio Candido usou para se referir à narrativa de Rubem Fonseca: o filme de Labaki é ultrarrealista, experiência incômoda e necessária a quem busca aguçar seus sentidos para o que está em volta.

No Facebook, o professor Zé Pedro comentou: muitos andam dizendo que Araraquara é privilegiada por Cafarnaum ser exibido em seus domínios territoriais. Se aquele texto simples mencionado no segundo parágrafo fosse uma resenha, aspectos técnicos seriam expostos de maneira clara, objetiva e racional para confirmar e provar tal privilégio.

Como se trata mais de algo próximo da resenha praticada no Bar do Mané que daquela publicada em suplementos culturais, digo apenas o seguinte à rara leitora e ao raro leitor que até aqui chegaram: vejam Cafarnaum e se arrepiem com o único e singular sorriso de Zain que antecede a subida dos créditos.

Luis Antônio
Luis Antônio
Jornalista. Formado em Ciências Sociais e Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Estudos Literários. Apresentador e editor do Jornal da Morada, da Rádio Morada FM 98,1
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