Hal Foster, no livro "O retorno do real", analisa a obra "Green car crash", de Andy Warhol: o que choca não é a violência ali representada pelos destroços do automóvel em chamas, mas a impassibilidade de certo observador. Em segundo plano, um pedestre, com as mãos no bolso, observa o veículo tomado pelo fogo. Não há nenhum vestígio de preocupação em sua atitude. Ele apenas olha, como se estivesse vendo TV na sala de sua casa.
Na literatura de Rubem Fonseca, a maioria dos leitores deve se sentir incomodada com a violência explícita – mortes como num vídeo game, para usar a definição do escritor Sérgio Rodrigues.
Nos contos "Feliz ano novo", "Passeio noturno" e "O cobrador", vemos narradores que relatam assassinatos cruéis com a mesma função objetiva encontrada numa notícia de jornal. Se analisarmos pela ótica de Foster, de fato, indivíduos sendo fuzilados por balas de calibre 12 não chocam tanto quanto o tom robótico utilizado por aqueles que relatam tais situações.
Todo censor possui certa dose de burrice. Vera Lúcia Follain de Figueiredo, em "Os crimes do texto: Rubem Fonseca e a ficção contemporânea", ressalta o intelecto limitado daqueles que tiraram o livro "Feliz ano novo" de circulação na época de seu lançamento, 1975, ditadura militar em pleno funcionamento. Os representantes da censura alegaram que a obra possui grande quantidade de palavrões, um atentado à moral e aos bons costumes da família tradicional brasileira. Pobres coitados. Mal sabiam eles que a subversão é outra: Rubem Fonseca dá voz a quem é impedido de falar. Ali estão representadas personagens que vivem no limite. É matar ou morrer. Sobrevier é a meta.
Mas, ora bolas, isso é só literatura. A arte não é a coisa, mas a representação dela (sempre bom ressaltar, em tempos de tantos absurdos). O problema é quando a realidade é mais inconcebível do que a ficção. Enquanto crianças são carbonizadas dentro de uma creche no interior de Minas e suas mães ajoelham em desespero, abutres ligam seus celulares e registram o sofrimento alheio. Impassíveis, compartilham a dor de pessoas que acabaram de perder seus filhos da maneira mais cruel.
No filme "O abutre", a personagem representada por Jake Gyllenhaal ganha a vida captando imagens que recheiam o jornalismo sensacionalista devorado por uma fiel audiência todas a manhãs. Mas o que ganharam os cinegrafistas amadores de Minas?
Saber que existem pessoas dispostas a atear fogo em si mesmas e levar consigo vidas inocentes choca – e muito. Mas a existência dos observadores impassíveis destacados por Hal Foster é algo ainda mais aterrador.