Na história da humanidade, a prática de queimar, proibir e retirar de circulação livros que afrontem a ordem e o poder vigentes se repete. Em todos esses momentos distintos, a sociedade se guiava pelo obscurantismo, pelo cerceamento e restrição das liberdades. A Inquisição e o Nazismo são dois exemplos históricos de períodos nos quais obras literárias sucumbiram às chamas da ignorância e da opressão.
Como se sabe, no entanto, a história se repete a primeira vez como tragédia e a segunda como farsa. Agora, a ideia volta a ameaçar a democracia. No Brasil do século XXI, políticos e falsos moralistas voltam a denunciar a ameaça à ordem provocada pelo “perigoso” conteúdo de um livro sobre sexualidade voltado ao público pré-adolescentes que, nas palavras dos oportunistas de plantão, destrói a moral e os bons costumes da tradicional família brasileira. O debate cheira a naftalina.
A histeria começou quando um deputado federal denunciou que o Ministério da Educação estaria preparando um material para discussão de gênero nas escolas. Apesar das inúmeras negativas do órgão, a tese se espalhou feito pólvora no meio mais conservador. Contribuiu para isso o apelido dado ao suposto material, preconceituoso e irreal sob todos os aspectos, mas de fácil apelo popular: kit gay. O resto já é conhecido: o kit que nunca existiu jamais chegou às escolas, o debate sobre gênero ganhou vigilância implacável (a ponto de proporem um projeto intitulado Escola Sem Partido) e o deputado catapultou uma candidatura à presidência da república a partir de meia dúzia de frases prontas e é favorito para, pelo menos, disputar o segundo turno das eleições presidenciais de 2018.
Quando o candidato, filiado a um partido nanico de aluguel e tendo com o vice um general da reserva sedento por comandar o país, exibiu o livro durante uma entrevista ao Jornal Nacional, oportunistas e sensacionalistas de todo o país reacenderam a “caça às bruxas”.
Em Araraquara, um blog local deu como manchete que dois exemplares (isso mesmo, dois exemplares!) do livro “Aparelho Sexual e Cia” circulavam perigosamente pela cidade. Uma cópia na biblioteca de uma escola da rede municipal e outra, pasmem, na biblioteca municipal! Sim, um blog revelou que um exemplar estava nas prateleiras da biblioteca. Onde mais queriam que o livro estivesse? Não é a biblioteca o espaço para consulta e acesso ao maior e mais diversificado tipo de leitura possível?
Algumas pessoas compartilharam a notícia e exigiram imediatas explicações. Algumas delas nunca sequer levaram os filhos à biblioteca , outras jamais discutiram sobre sexualidade em casa ou ensinaram o respeito à diferenças – o que inclui, é óbvio, outros modelos de relacionamento e de família que não sejam o dela – mas sentiram ameaçadas pela presença da obra entre nós. Parecem se esquecer de que, com um smartphone na mão, a criança tem acesso à todo tipo de conteúdo – indicados ou não para sua faixa etária. A questão é ensiná-la a lidar com tudo isso, tendo como base a informação e o respeito.
Não vai demorar o dia em que os pregadores da ignorância, além de censurar a circulação de conteúdo que não passe pelo seu filtro moral, voltarão a queimar livros em praça pública. O momento mais recente da história brasileira em que obras foram proibidas de circular foi a Ditatura Militar, que o candidato, coincidentemente, defende em todas as oportunidades possíveis.
Dessa vez, no entanto, os sinais são cristalinos. Não há máscaras, nem disfarces, ao contrário, a ignorância é bradada em alto som. Que a História nos ensine a não repetir a farsa.