InícioEntretenimentoPor que adoramos assistir a novelas, séries e filmes?

Por que adoramos assistir a novelas, séries e filmes?

Por: BBC Brasil

Parece o roteiro do blockbuster perfeito: um rei atraente é abençoado com uma força sobre-humana, mas sua arrogância insuportável pode ameaçar seu reinado. Entra em cena um viajante "pé no chão" que o desafia à luta. O rei termina a batalha humilhado, os dois se tornam amigos próximos e embarcam numa série de perigosas missões pelo reino.

Trata-se, no entanto, da Epopeia de Gilgamesh, esculpida em tábuas da antiga Babilônia há 4 mil anos, e que se tornou a obra literária mais antiga remanescente. Pode-se afirmar que a história foi bastante popular na época, visto que transcrições do poema podem ser encontradas ao longo do milênio seguinte.

O que impressiona é o fato de a epopeia ser lida e apreciada ainda hoje, e que muitos de seus elementos básicos – incluindo a calorosa relação entre os dois amigos – podem ser encontrados em várias histórias populares que surgiram depois.

Essas características em comum são o interesse principal de especialistas em "darwinismo literário", que se perguntam o que exatamente é uma boa história, e as razões evolutivas para certas narrativas – desde a Odisseia de Homero a Harry Potter – terem tanto apelo popular.

 

Escapismo?

Embora não tenhamos nenhuma grande evidência de narrativas existentes antes do advento da escrita, podemos assegurar que elas foram centrais para a vida humana por milhares de anos. As pinturas nas cavernas em lugares como Chauvet e Lascaux, na França, que datam de 30 mil anos, parecem mostrar cenas dramáticas provavelmente acompanhadas de narrativa.

"Se você olhar ao redor da caverna, verá uma série de imagens diferentes que parecem ser de uma narrativa relacionada a uma expedição de caça", diz Daniel Kruger, da Universidade de Michigan, no Reino Unido – narrativas que podem ser acompanhadas de lições importantes para o grupo. Alguns contos da Era Glacial podem perdurar até hoje.

O adulto médio gasta 6% do dia envolvido com histórias fictícias em vários formatos. Do ponto de vista evolutivo, seria muito tempo e energia gastos em puro escapismo, mas psicólogos e teóricos literários agora identificaram potenciais benefícios desse "vício" em ficção. Uma ideia comum é que a narrativa é uma forma de jogo cognitivo que aguça nossa mente, o que nos permite simular o mundo ao redor e imaginar estratégias diferentes, particularmente em situações sociais.

"Ele nos ensina sobre outras pessoas, é uma prática da empatia e da teoria da mente", diz Joseph Carroll, da Universidade Missouri-St Louis, nos Estados Unidos.

Como uma prova dessa teoria, testes com imagens cerebrais mostraram que ler ou ouvir histórias ativa várias áreas do córtex que estão envolvidas com o processamento social e emocional; e quanto mais as pessoas leem ficção, mais fácil torna-se empatizar com outras pessoas.

 

Política paleontológica

Psicólogos evolutivos acreditam que nossas preocupações pré-históricas ainda influenciam o tipo de história que nos atrai. Como humanos que evoluíram para viver em sociedade, por exemplo, nós precisamos aprender a cooperar e não agirmos como alguém que tira vantagens sem dar nada em troca – ou como indivíduos dominadores que abusam do poder em detrimento do bem-estar do grupo.

Nossa capacidade de contar histórias também pode ter evoluído como uma forma de comunicar as normas sociais corretas. "A lição é resistir à tirania e não se tornar também um tirano", diz Kruger.

Dessa forma, vários estudos identificaram a cooperação como um tema central em narrativas populares ao redor do mundo. O antropólogo Daniel Smith, da UCL (University College London), visitou 18 grupos de caçadores-coletores das Filipinas. Ele descobriu que quase 80% de seus contos dizem respeito a tomadas de decisão moral e dilemas sociais.

Isto parece, portanto, traduzir-se em seu comportamento na vida real: os grupos que pareceram investir mais em contar histórias também provaram ser os mais cooperativos durante várias tarefas experimentais – exatamente como a teoria evolutiva sugere.

A Epopeia de Gilgamesh traz um exemplo da literatura antiga. No começo do conto, o Rei Gilgamesh parece ser o herói perfeito em termos de força física e coragem, mas também é um tirano arrogante que abusa do poder, usando seu "droit du seigneur" (ou "direito do senhor") para dormir com qualquer mulher por quem se interesse. Só depois de ser desafiado pelo estranho Enkidu ele finalmente aprende o valor da cooperação e da amizade. A mensagem para o público parece estar em alto e bom som: se até o rei heróico precisa respeitar os outros, então, isso serve para você também.

 

Qual é a história mais antiga?

Embora não tenhamos provas, é possível que alguns contos que ainda lemos hoje tenham origem na Pré-História. Daniel Kruger ressalta que histórias como aEpopeia de Gilgamesh, e o Livro do Gênesis, no Antigo Testamento, contêm detalhes de um dilúvio mítico que pode ter relação com memórias culturais remanescentes de eventos geológicos reais no Oriente Médio do final da Era Glacial.

Populações indígenas na ilha de Flores, na Indonésia, enquanto isto, há muito tempo guardam mitos dos Ebu Gogo – criaturas pequenas e sem idioma, que parecem ter relação com a subespécie humana que viveu concomitantemente com a população de Homo sapiens antes de ser extinta há mais de 10 mil anos.

"Os moradores locais têm histórias desses pequenos indivíduos que não conseguiam compreender a linguagem humana, mas podiam repetir palavras que eram ditas a eles. E o que me impressiona é que uma história como essa pode persistir por literalmente dezenas de milhares de anos", diz Kruger. Isso tudo demonstra outro importante propósito da narrativa – o de oferecer memória coletiva do passado distante.

Ao mapear a dispersão de contos populares orais ao redor de diferentes grupos culturais na Europa e na Ásia, alguns antropólogos também perceberam que certos contos populares – como O Ferreiro e o Diabo (The Smith And The Devil, em inglês) – pode ter chegado há mais de 6 mil anos com os primeiros colonos indo-europeus, que depois se espalharam e conquistaram o continente.

 

Passado e presente: temáticas comuns

Em seu livro On the Origin of Stories (Sobre a origem das histórias, em tradução livre), Brian Boyd, da Universidade de Auckland, da Nova Zelândia, descreve como esses temas também são evidentes na Odisseia, de Homero. Enquanto Penélope espera o retorno de Ulisses, seus pretendentes passam o dia todo comendo e bebendo em sua casa. Quando ele finalmente retorna disfarçado de um mendigo pobre, no entanto, eles se recusam a oferecer-lhe abrigo em sua própria casa. Eles acabam tendo um castigo merecido quando Ulisses revela seu disfarce e cumpre uma vingança sangrenta.

Você deve supor que nosso interesse na cooperação pode ter diminuído com o aumento do individualismo da Revolução Industrial, mas Kruger e Carroll descobriram que o tema ainda é prevalente em alguns dos mais populares romances britânicos dos séculos 19 e início do 20.

Ao pedir a um painel de leitores para avaliar os personagens principais em mais de 200 romances britânicos (começando por Jane Austen e terminando em Edward Morgan Forster), os pesquisadores notaram que a principal falha apontada num antagonista era sua busca pelo domínio às custas dos outros ou o abuso de seu poder, enquanto os protagonistas pareciam ser menos individualistas e ambiciosos.

Tenha como exemplo Orgulho e Preconceito, de Jane Austen. A calculista e traiçoeira Srta. Bingley visa a aumentar seu status se aproximando do rico mas arrogante Sr. Darcy e unindo seu irmão e a irmã de Darcy – enquanto menospreza qualquer um de uma classe social mais baixa. A heroína Elizabeth Bennett, ao contrário, mostra pouco interesse em ascender socialmente dessa forma e até rejeita o Sr. Darcy em sua primeira proposta.

William Thackeray, de Feira das Vaidades, enquanto isso, brinca com nossas expectativas sobre um protagonista ao colocar a implacavelmente ambiciosa (e possivelmente assassina) Becky Sharp no centro do romance, enquanto sua amiga amável (mas sem graça) Amélia é um personagem secundário. Era, na própria fala de Thackeray, "um romance sem um herói", mas em termos evolutivos o castigo de Becky – já que ao final ela é rejeitada pela sociedade – ainda sinaliza uma forte advertência àqueles que sejam tentados a se colocar na frente dos outros.

 

A lição dos bonobos

A teoria evolutiva também pode lançar luz sobre o elemento básico da ficção romântica, como o da preferência de heroínas por figuras paternais e estáveis (como o Sr. Darcy em Orgulho e Preconceito ou Edward Ferrars em Razão e Sensibilidade) ou canalhas volúveis (como os mulherengos covardes Sr. Wickham ou Willoughby).

Os "pais" são opções melhores para a segurança a longo prazo e proteção de suas crianças, mas de acordo com a teoria evolutiva conhecida como a "hipótese do filho sexy", apaixonar-se por um canalha infiel tem suas vantagens, desde que ele possam transmitir sua boa aparência, astúcia e charme para seus filhos, que também poderiam aproveitar o sucesso sexual.

O resultado é a maior chance de seus genes serem transmitidos para um maior número de netos – mesmo que o mulherengo de seu parceiro tenha lhe causado desgosto pelo caminho. É por essa razão que os malvados da literatura ainda nos entusiasmam, mesmo que saibamos de seu mau comportamento.

Dessa forma, escritores como Austen são psicólogos evolutivos intuitivos com uma compreensão "extremamente precisa" sobre a dinâmica sexual e que antecipa nossas teorias recentes, diz Kruger. "Acredito que essa seja parte da resposta para a longevidade dessas histórias. É por isso que os romances que Jane Austen escreveu há 200 anos ainda são temas de filmes sendo rodados hoje".

Há muitas outras compreensões que se podem tirar desse leituras, como por exemplo a recente análise das figuras malévolas em narrativas de fantasia e terror – como o Lord Voldemort, inimigo de Harry Potter, e o Leatherface, de O Massacre da Serra Elétrica.

Características comuns incluem uma aparência grotesca que seria projetada para desencadear nosso medo evolutivo de contágio de doença; e dado o nosso tribalismo inato, os vilões geralmente têm sinais de que são de fora do grupo – a razão por que tantos malvados de Hollywood têm sotaques estrangeiros. Mais uma vez, a ideia é que uma briga com esses seres do mal acaba por reforçar nosso senso de altruísmo e lealdade ao grupo.

O romancista britânico Ian McEwan é uma das mais celebradas vozes a ter abraçado essas leituras evolutivas da literatura e argumenta que vários elementos comuns dos enredos podem ser encontrados nas intrigas de nossos primos primatas.

"Se lemos relatos sobre a observação sistemática e não-intrusiva de grupos de (macacos) bonobos", escreveu McEwan em artigo publicado na coletânea The Literary Animal (O Animal Literário, em tradução livre), "vemos ensaiados todos os principais temas do romance do século 19: alianças feitas e desfeitas, indivíduos emergindo enquanto outros caem, planos secretos, vingança, gratidão, orgulho ferido, flertes bem e mal sucedidos e luto".

McEwan argumenta que deveríamos entender essas tendências da evolução como a principal fonte de poder da ficção de atravessar os continentes e os séculos. Não seria possível desfrutar da literatura de um tempo remoto ou de uma cultura muito diferente da nossa, a menos que compartilhemos de algum terreno emocional, um depósito de ideias, com o escritor", acrescenta.

Com base nesse depósito compartilhado de ideias, uma história como a Epopeia de Gilgamesh continua fresca como se tivesse sido escrita ontem, e a mensagem atemporal de amizade leal permanece uma lição para todos nós, mesmo 4 mil anos depois de o autor ter gravado a saga numa tábua de pedra.

 

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