O enunciado da prova de português pedia que os alunos escrevessem uma continuação para um conto que trazia a seguinte história:
Executivo chega em casa do trabalho e, entediado com os hábitos burgueses da família, sai para dar uma volta com seu carro, máquina de última geração munida de motor com muitos cavalos. Depois de aliviar o stress atropelando uma mulher, ele volta para o lar e dá boa noite à esposa que vê televisão – amanhã será um dia pesado na companhia.
Talvez você já tenha percebido que se tratava de “Passeio noturno”, uma das mais emblemáticas narrativas de Rubem Fonseca, e que eu era um dos discentes que tinham nas mãos aquele documento mimeografado.
Até ali, minha formação cultural se baseava em filmes da Sessão da Tarde, quadrinhos de super-heróis e livros da Série Vaga-Lume. Nunca tinha visto nada parecido com aquilo. O narrador de Fonseca é vilão e protagonista, está no topo da cadeia alimentar, tem como passatempo matar miseráveis e dorme o sono dos justos. Fim. Não há Batmans no mundo real. Eu me sentia como o fundo do oceano que recebe a âncora jogada pelo marinheiro.
Também havia aquela linguagem fluida e afiada, algo parecido com o que se via nas páginas do Notícias Populares. Mas a matéria-prima do conto não se resume apenas à violência espetacularizada. A voz monótona, indiferente e objetiva daquele empresário filho da puta é a de abutres que se alimentam das perseguições policiais narradas ao vivo pelo Datena. É uma leitura que nos joga para a perspectiva de tecnocratas que afiam arame farpado enquanto corpos são empilhados nas calçadas.
No prefácio escrito para o romance Léxico familiar, de Natalia Ginzburg, Alejandro Zambra diz que a descoberta de um grande autor modifica tudo o que sabíamos ou acreditávamos saber e faz com que nos sintamos bobos por não ter chegado aos seus livros antes. Durante anos, tentei descrever o que senti quando, lá no ensino médio, fazendo uma avaliação de língua portuguesa borrada de tinta azul, li Fonseca pela primeira vez.
Mês passado, Zé Rubem morreu. Depois de tanto tempo lendo e relendo seus contos e romances, acabei tendo aquele sentimento de achar que estive próximo de sua pessoa.
Atendendo o que ordenava o enunciado, escrevi um spin off em que o assassino de “Passeio noturno” é preso e se arrepende dos crimes cometidos. Tirei nota máxima. Se eu fosse a professora Maria de Lourdes, teria me dado zero.