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Sob o sol da injustiça

"Queijo assado, chapéu, tererê, cangas e missangas de todo tipo são carregados por quem faz da praia seu espaço de trabalho. Negros. Quase todos negros.  "

Na semana passada, aventurei-me num período carnavalesco na baixada santista. Desliguei-me um pouco da TV, internet e redes sociais e, mesmo apreciando por demais o som dos tamboris do Anhembi e da Sapucaí, desconectei-me das escolas de samba para curtir alguns dias de praia.

Mesmo em descanso com a família, um jornalista não costuma fechar os olhos ao mundo à sua volta. Está treinado a travar um olhar atento, observando situações que, imagino, de tão naturalizadas, podem passar despercebidas à qualquer pessoa.

As percepções que tive no carnaval não foram tão alegres quanto o som dos tamborins (ou, se preferir, o axé das cantoras baianas do momento). A baixada santista continua uma prova inconstestável das desigualdades brasileiras. A miséria impera mais  ao “pé” da Serra do Mar, seja em Santos, Praia Grande ou São Vicente, onde se vê famílias morando em palafitas, crianças vendendo biscoito barato ou adultos exibindo caranguejos como iguaria gastronômica no disputado acostamento do sistema Anchieta-Imigrantes. O trânsito parado, queixa número 1 da burguesia paulista que se aventura no litoral em feriados prolongados, é esperança de uma grana extra para quem vive na miséria a poucas quadras dos condomínios e luxuosos imóveis de veraneio.

A periferia dessa região é moradia dos que circulam de sol à sol sobre a areia quente comercializando os típicos itens praianos. Queijo assado, chapéu, tererê, cangas e missangas de todo tipo são carregados por quem faz da praia seu espaço de trabalho. Negros. Quase todos negros.  

Uma cena doeu no peito. Praia do Tombo, Guarujá. Praia cheia num belo dia de calor. Sentado numa confortável cadeira, pés na areia, curtindo a praia, não consigo deixar de ouvir a conversa do vizinho de guarda-sol. O local estava cheio, o que obrigava uma proximidade maior entre os banhistas. Dois homens de meia-idade, brancos, bebendo e comendo o que o quiosque mais próximo lhes servia. Um vendedor se aproxima, negro. Ele passa, oferece sua mercadoria. “– Não, obrigado”. Ele se afasta. Os colegas, cujas esposas se estorricavam no sol a poucos metros dali, conversam entre si. “- Esse aí deve vender pra mandar dinheiro pra família na Etiópia”.

Se me contassem, certamente não acreditaria. Mas eu ouvi. Calado. Covardemente calado.

Volto pra casa. Pelo WhatsApp, meu irmão me alerta: a Paraíso do Tuiutí fez do carnaval um grande ato político. “Você tem que ver o encerramento do desfile. O samba-enredo também é bonito”, ele diz. Pesquiso para ver do que se trata. Com direito ao antológico “Vampirão neo-liberal”, constato que a agremiação fez história na Sapucaí. E lavou minh‘alma.

“Meu Deus! Meu Deus!

Se eu chorar, não leve a mal

Pela luz do candeeiro

Liberte o cativeiro social”

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