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Um acidente está acontecendo (no gerúndio, mesmo)

O carro dirigido por ele está a 100 km/h, viagem tranquila, sem muitos percalços. Em determinado momento, em um trecho perigoso da estrada, outro veículo, na mesma velocidade, em sentido contrário, invade sua pista repentinamente e a colisão frontal é inevitável.

Ele fica esperando o pior, cerra os olhos com força, mas a pancada não vem. Sua primeira sensação é de alívio. Ufa, não morri. Mas, ao abrir os olhos bem devagar, logo ele percebe que os carros ainda estão frente a frente na estrada, como que parados no exato instante da batida que seria mortal. A expressão travada na face do outro motorista é de pânico.

Ele tenta descer do carro para entender o que houve, mas seu corpo estranhamente não se move, não obedece.

O que seria aquilo? Um milhão de pensamentos passam pela sua cabeça. Ele lembra da família que deixou em casa antes de sair com uma despedida comum. Lembra dos detalhes da viagem que estava fazendo, lembra até que esqueceu de alimentar seus dois jabotis de estimação.

Mas logo sua atenção retorna ao acidente.

A confusão mental ainda segue por vários minutos, até que ele percebe o que está havendo. O tempo começou, sabe-se lá por qual motivo, a passar muito lentamente para ele.

Ele consegue pensar em muitas coisas, muitas mesmo, enquanto as placas dos carros se tocam e lentamente a lataria dos veículos começa a amassar, como se fosse uma super câmera lenta.

Seu corpo físico está preso a esta lentidão. Ele não consegue se mover. Mas consegue perceber seu corpo começar lentamente a ser empurrado para frente, movimento causado pelo impacto da batida.

A primeira reação dele, é tentar proteger o rosto com as mãos, mas seus braços não obedecem, parecem presos ao volante.

Ele tem tempo para pensar em várias maneiras de se livrar daquilo. Tem tanto tempo, que até se distrai entre um pensamento e outro. Lembra de piadas, ri por dentro.

Aos poucos, vem uma sensação de aperto no peito. Seria a angústia daquela prisão?

Não era a angústia que apertava, era o seu peito que começava a pressionar o cinto de segurança, indo em direção ao volante e ao para-brisas, jogado para frente com o impacto da batida.

A dor no peito foi aumentando, sem tréguas, enquanto ele via a frente do carro vagarosamente se deformar e começar a vir em sua direção. Tudo muito lentamente.

Ele já não suporta aquela dor no peito. As mãos doem também. Estão começando a bater no painel. A dor é insuportável. Ele pode sentir tudo. Os ossos começam a ser dobrados bem devagar, até que se quebrem. Ele sente tudo. Cada corte na carne, provocada pelo acidente, ocorre aos poucos, elevando o sofrimento enquanto o tempo não passa.

A parte de trás do carro começa a se erguer pela força da batida. Sua cabeça está atravessando o vidro, bem devagar, cada caco cortando lentamente sua pele. Tudo é lento, menos a dor e os pensamentos.

Em meio às dores insuportáveis, ele percebe que tem poucas chances de sobreviver àquilo, sabe o desfecho, ou pelo menos imagina, mas não consegue fazer nada a respeito. Nem acelerar a passagem do tempo, nem reduzir seu sofrimento. Ele se desespera e chora, porque entende que vai vivenciar aquilo tudo por muito tempo até que o acidente “acabe”. Até que aquilo passe, ele vai sentir todo aquele sofrimento, toda dor, sem escolha, bem devagar, mas com toda a intensidade.

A sensação de impotência é devastadora. Ele só pode esperar. O acidente está acontecendo.

Me sinto exatamente assim, hoje, em meio à pandemia no Brasil do Bolsonaro. Sei o que está acontecendo, vejo, percebo e luto contra a devastação, mas é em vão. A sensação é que o nosso sofrimento não vai ter fim ou que o fim está muito longe, mas a dor é sentida todo dia e toda hora.

Na melhor das hipóteses, vamos sobreviver, mas vai demorar muito até tudo isso acabar e, até lá, o sofrimento é garantido.

Raphael Pena

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