Por: BBC Brasil
Maracanã, 26 de janeiro de 1980. No vestiário transformado em camarim, o clima era de apreensão. Por causa do temporal que caía durante todo o sábado, não houve passagem de som. Os técnicos não queriam molhar os microfones, nem os violinistas estragar seus Stradivarius.
Faltando uma hora para o início do espetáculo, Frank Sinatra já tinha avisado que, se não parasse de chover, voltaria para o hotel Rio Palace.
Temendo o pior, ou seja, o cancelamento do show, o empresário Roberto Medina, dono da agência Artplan Publicidade, responsável por trazer Sinatra ao Brasil, pegou o cantor pelo braço e o levou até a boca do túnel de acesso ao campo. Num dos maiores estádios do mundo, um público estimado em 175 mil pessoas aguardava, ansioso, o início do show.
Renzo Mora, então estudante de 17 anos, era uma dessas 175 mil pessoas. O paulistano que aprendeu a gostar de Sinatra antes mesmo de falar inglês veio ao Rio de ônibus, "com o dinheiro contado". Hospedado na casa de uma prima, assistiu ao show no Maracanã e, de lá, seguiu para casa.
Há exatos 40 anos, passou o dia com o ouvido grudado no radinho de pilha: ora os organizadores diziam que o show tinha sido cancelado por causa da chuva; ora que ele estava confirmado, apesar dela. "A tensão era enorme", resume o jornalista, hoje com 57 anos, que assistiu a dois outros shows de 'A Voz' e escreveu dois livros, Sinatra: O Homem e a Música (2008) e Frank, Dean & Sammy: Três Homens e Nenhum Segredo (2011).
Sensibilizado com a multidão que tomava chuva à espera do show, Sinatra reviu sua decisão. "Não posso deixar essa gente na mão", disse, segundo jornais da época. "Vou cantar de qualquer jeito."
Ele e Medina se conheceram em 1977, quando o astro gravou um comercial para uma marca de uísque. Convencê-lo a se apresentar no Brasil não foi fácil. O pai de Roberto, o empresário Abraham Medina, bem que tentou, em 1955, sem sucesso.
Sinatra alegava que uma cartomante teria dito que, se viesse à América do Sul, seria assassinado. Conversa. Tudo não passava de uma desculpa inventada pelo próprio para escapar do assédio de empresários brasileiros.
Em 1979, porém, Sinatra aceitou a proposta. Mas, na dúvida, incluiu no contrato uma cláusula que obrigava os organizadores do show a garantir um público de, no mínimo, 60 mil pessoas.
A hora da estrela: 20h53
"A sete minutos da hora marcada, algo mágico aconteceu: a chuva parou", relata outra testemunha ocular daquela noite, o jornalista Ruy Castro. Em Saudades do Século XX (1994), ele dá mais detalhes: "O céu se abriu sobre o estádio e as estrelas apareceram. E a maior delas também".
A cerimonialista Amarilis Vianna assistiu ao show de um lugar privilegiado: no meio da orquestra de 40 músicos regida pelo maestro Vinnie Falcone. Contratada pela Artplan para atuar como intérprete de Barbara Sinatra durante a temporada carioca, Amarilis ficou responsável por traduzir as falas de Sinatra durante a apresentação.
"Os organizadores pediram que eu encurtasse algumas frases. Tinham medo que começasse a chover bem no meio do show", explica.
Naquela noite, Sinatra "deu trabalho" a Amarilis. Elogiou o público ("Nunca, em toda a minha vida, tive uma plateia assim"), reclamou da imprensa ("Vim aqui para cantar e não para conversar com repórteres") e até fez gracejo sobre o tempo ("Viram como Deus é nosso amigo? Parou de chover!").
O show começou às 21h e terminou às 22h15. Ao longo de 75 minutos, revisitou 20 canções de seu repertório, como I've Got You Under My Skin, The Lady Is a Tramp e New York, New York. Como bônus, prestou homenagem a Tom Jobim, com quem gravara o álbum Francis Albert Sinatra e Antônio Carlos Jobim (1967), cantando Corcovado.
"Quando veio ao Rio, Sinatra já tinha 64 anos. Claro que já passara do apogeu de seus anos de ouro, dos anos 1940 a meados da década de 1960", avalia o jornalista e crítico musical Roberto Muggiati, então editor-chefe da Manchete, que ocupou uma das 5,1 mil cadeiras do gramado. "O que ele perdera em vigor, ganhara em experiência".
The 'Serial Kisser'
Pelo menos dois momentos do show tornaram-se antológicos. O primeiro deles aconteceu durante Strangers in the Night, quando Sinatra esqueceu um trecho da letra e, para sua surpresa, foi "socorrido" pelo público. "Quando parei, todo o Maracanã começou a cantar. Fiquei emocionado", escreveu em uma de suas biografias.
Quando terminou de cantar My Way, outro susto. O taxista português José Alves de Moura, "o Beijoqueiro", invadiu o palco, driblou os seguranças e tascou uma beijoca na bochecha do cantor. "O próprio Sinatra, em suas memórias, lembrou daquilo que chamou de 'The Kissing Bandit'", diz Renzo.
Às 22h15, depois de acenar pela última vez com um lenço branco, despediu-se do público e desceu a passarela, rumo ao camarim. "E, como se tivesse havido um acordo cósmico, a chuva voltou com toda a força", afirma Ruy Castro.
A passagem de Sinatra pelo Rio não se resumiu ao show do Maracanã. Entre os dias 22 e 25 de janeiro, realizou quatro apresentações no recém-inaugurado Rio Palace, hoje rebatizado de Fairmont.
O espetáculo atraiu, entre outros, o humorista Chico Anysio, o cantor Agnaldo Timóteo e o sambista Oswaldo Sargentelli. Cada um dos 600 espectadores pagou, por noite, Cr$ 20 mil, algo em torno de R$ 4,7 mil em valores atuais.
Fafá de Belém foi uma das mais assíduas espectadoras de Sinatra no Brasil. Viu os shows do Rio e os de São Paulo. "Aprendi a gostar de Sinatra com papai. Ele gostava tanto que, em 1997, foi sepultado ao som de New York, New York", recorda. "Sinatra não era mais criança quando veio ao Rio. Mas continuava charmoso como sempre."
'Sinatra in Rio'
"The Voice" desembarcou no Galeão na segunda, dia 21, às 8h40. Junto dele, veio uma comitiva de 25 pessoas, que incluía Barbara, sua mulher, e Robert, seu enteado. De lá, o cantor seguiu, de helicóptero, para o Santos Dumont, onde pegou um carro até Copacabana. Na frente do hotel, cerca de 200 jornalistas, do Brasil e do exterior, se acotovelavam à espera do astro.
A repórter do jornal Última Hora Rose Esquenazi, então com 25 anos, estava entre os profissionais escalados para cobrir a visita de Sinatra ao Rio. "Foram sete dias de muita ralação", lembra a hoje pesquisadora do Departamento de Comunicação da PUC-Rio. "Chegava ao hotel por volta das 9 da manhã e só saía depois do show que Sinatra fazia no hotel, lá pelas onze da noite."
Só houve uma coletiva de imprensa, no dia da chegada de Sinatra, e durou pouco mais de três minutos. Nela, o cantor limitou-se a dizer que a viagem tinha sido cansativa, que ele estava exausto e que só não veio antes ao Brasil por falta de tempo. Antes que alguém pudesse esboçar mais alguma pergunta, Lee Solters, seu assessor de imprensa, puxou o cantor pelo braço.
No empurra-empurra entre fotógrafos e seguranças, sobrou até para Barbara. "Sinatra não veio ao Brasil para ser tratado como animal", vociferou o assessor. O correspondente Harold Emert, que produzia conteúdo para o Latin American Post, não guarda boas recordações. "Levei uma dura do Solters por ter dito, numa matéria, que Sinatra usava peruca", afirma.
'Estou cheio de Sinatra'
Entre um show e outro, Sinatra pouco saía do quarto. Enquanto Barbara se esbaldava pela Floresta da Tijuca ou pelo Cristo Redentor, seu marido permanecia recluso na suíte de 600 metros quadrados. Os vidros das varandas tinham 20 milímetros de espessura e eram à prova de balas.
Havia rumores de que Sinatra estaria à base de medicamentos para livrar-se de um resfriado. Outra lenda urbana especulava que o cantor teria vindo ao Brasil para abrir um cassino na Amazônia.
"A tentação de cantar para o maior público já reunido para um único artista foi o que motivou sua vinda ao país", explica Renzo Mora. Durante os seis dias em que Sinatra passou na cidade, não se falava em outra coisa. Até o poeta Carlos Drummond de Andrade, em uma de suas crônicas para o Jornal do Brasil, desabafou: "Estou cheio de Sinatra e, onde quer que eu vá, só ouço falar nele, só vejo o retrato dele, só escuto músicas cantadas por ele".
Nas poucas vezes em que saía do quarto, o cantor descia para jantar no restaurante do hotel, o Le Pré Catelan. Numa dessas vezes, foi acompanhado, entre outros felizardos, pela cantora Eliana Pittman.
O convite para um jantar "exclusivérrimo" partiu do guitarrista Al Viola, um dos músicos de Sinatra e amigo do pai de Eliana, o saxofonista Booker Pittman. "Ele convidou, mas fez uma recomendação: não tire fotos, porque o Sinatra não gosta. Fui obediente, mas me arrependo até hoje", ri Eliana ao contar a história.
Durante o jantar, Barbara não desgrudou do marido. Nem deixou ninguém chegar perto. "Não lembro sobre o que conversamos. Afinal, lá se vão 40 anos. Mas, dos olhos azuis dele eu não me esqueço. Aquele homem era um tesão!", gargalha Eliana.
A atriz Myrian Rios também teve o privilégio de ver "Old Blue Eyes" de pertinho. O encontro aconteceu no Maksoud Plaza, em São Paulo, em agosto de 1981. Na ocasião, o casal Roberto Carlos e Myrian Rios, para ficar mais próximo do ídolo, se hospedou no mesmo andar da suíte presidencial Trianon: o 20º andar.
"Sinatra elogiou o Roberto pela qualidade de seu trabalho e o parabenizou por ter uma esposa tão jovem", recorda Myrian.
Ao todo, Sinatra fez nove shows no Brasil: cinco no Rio, em 1980, e quatro em São Paulo, um ano depois. O convite para se apresentar em São Paulo partiu do empresário Henry Maksoud, fundador do hotel que leva seu sobrenome. Cada ingresso foi vendido a Cr$ 59 mil, o equivalente hoje a R$ 7,5 mil.
Os shows aconteceram entre os dias 13 e 16 de agosto de 1981 para um seleto público de 2,8 mil espectadores.