Dar aulas sobre livros que compõem a lista do vestibular da Unicamp tem sido gratificante. São títulos que dificilmente eu leria por conta própria. Como professor, estipulo a mim mesmo a meta de não apenas considerar o que pode ou não aparecer no vestibular, mas também levar o aluno a refletir sobre aspectos de nossa realidade que são espelhados no texto literário.
Um dos livros que mais gostei, nesse sentido, foi "Caminhos cruzados", de Erico Verissimo. Desse gaúcho, só havia lido, até então, "Um certo Capitão Rodrigo", que é daqueles romances que a gente lê e se pergunta: "como é que pude não ter lido esse autor antes?"
Sempre que se fala em 2ª fase do Modernismo, pensa-se em regionalismo e histórias ambientadas no Nordeste. "Vidas secas", de Graciliano Ramos, e "Fogo morto", de José Lins do Rego, são bons exemplos do chamado neorrealismo que denuncia os perrengues passados pelos sertanejos em ambientes, no mínimo, inóspitos. Pois Erico Verissimo, apesar de estabelecer como cenário a urbanizada Porto Alegre da década de 30, também se faz regionalista. Afinal, naquela época, pouca gente sabia o que se passava na capital gaúcha.
Em "Caminhos cruzados", Verissimo equipa seu narrador com a chamada "técnica do contraponto". Essa habilidade narrativa permite que o leitor tome contato com diferentes pontos de vista da grande quantidade de personagens ali representada. Por meio de um refinado discurso indireto livre, a voz desse narrador se mistura ao que vai pela mente tanto do rico que se farta no conforto de sua mansão quanto do pobre que passa fome e vive longe das benesses do capitalismo.
Como toda boa obra de arte, o romance de Verissimo, lançado em 1935, é atemporal. Uma de suas personagens, visivelmente caricata, encaixa-se perfeitamente em um dos políticos mais badalados do momento.
D. Dodó é casada com Teotônio Leitão Leiria, um importante comerciante de Porto Alegre. A socialite preside uma sociedade beneficente e gosta de ajudar, quando pode, os mais necessitados pessoalmente. Uma santa? Não exatamente. O ácido narrador de Verissimo nos mostra que o maior interesse de D. Dodó é ser vista pela sociedade como uma mulher de bem. Por trás de cada ato de caridade, há o desejo de ser fotografada e aparecer no jornal como a defensora dos mais fracos.
Quando ouço falar dos vídeos propagandísticos do milionário prefeito de São Paulo distribuindo cobertores ou varrendo ruas, na hora, é a representação de D. Dodó que me vem à cabeça.
E, convenhamos, até o os nomes são parecidos. Dória poderia perfeitamente ser chamado de Dodó.