A imagem do menino Aylan, fotografado morto numa praia turca quando sua família (e outras centenas de refugiados) tentavam fugir da guerra na Síria deixou o mundo consternado há cerca de dois anos. Poucas coisas nos últimos anos me impactaram tanto quanto essa cena.
No dia seguinte ao que os jornais estamparam a imagem, tive a oportunidade de estar com o escritor Sérgio Rodrigues, autor de livros como O Drible e Viva a língua brasileira. Na ocasião, indaguei-o sobre como a desvantagem da literatura nesse mundo movido por imagens. Na era do imediatismo, mesmo um bom texto literário ou jornalístico não teria chances de alcançar o efeito de um flagrante, seja por foto ou vídeo, como o que abalou o mundo naqueles dias.
Rodrigues concordou com o raciocínio e ponderou que a função da literatura é de outra ordem. As letras jamais poderiam reproduzir a brutalidade humana de modo tão visceral quanto uma imagem. Sua função é servir como um instrumento de reflexão sobre as atrocidades que a humanidade insiste em reproduzir de tempos em tempos.
Desde aquele encontro, outras imagens (ou fatos) têm nos atordoado com insistência. O sobrevivente de um bombardeio em Aleppo, também criança, mostrado na foto acima, é outra imagem avassaladora.
Mas eis que em 2017 descubro que estava enganado. Um texto pode, sim, ter a mesma força que uma imagem. A prova não veio de um acadêmico, escritor consagrado ou mestre do jornalismo literário. É uma redação, certamente exigida pela escola como atividade para compreensão dos períodos literários, cujo autor não deve ter mais do que 15 ou 16 anos. Foi escrito no Rio de Janeiro, o cartão-postal brasileiro mais conhecido no mundo, dilapidado pela turma de Cabral e afundado na incompetência secular que provocou a mais cruel desigualdade urbana que se tem notícia em solo tupiniquim.
Reproduzo o texto abaixo. Trata-se de uma adaptação da famosa “Canção do Exílio”, de Gonçalves Dias. Um poderoso soco no estômago disparado pela caneta juvenil de um adolescente brasileiro diariamente ameaçado por balas perdidas. A singela poesia soa como um grito de socorro.
Minha terra é a Penha.
O medo mora aqui
Todo dia chega a noticia
Que morreu mais um ali
Nossas casas perfuradas
Pelas balas que atingiu,
Corações cheios de medo
Do policia que surgiu
Se cismar em sair a noite
Já não posso mais
Pelo risco de morrer
E não voltar para os meus pais
Minha terra tem horrores
Que não encontro em outro lugar
A falta de segurança é tão grande
Que mal posso relaxar
“Não permita Deus que eu morra”
Ants de sair deste lugar
Me leve para um lugar tranquilo
“Onde canta o sabiá”