Na história em quadrinhos Sandman, um escritor em crise criativa "compra" Calíope. Mantendo-a como refém em sua casa, ele consegue inspiração para escrever um romance de sucesso atrás do outro. O problema é que a musa inspiradora criada por Homero desperta os mais abomináveis instintos do romancista. Além de mantê-la enclausurada, estupra-a assiduamente. Ao final da estória, o escriba paga caro por seus atos.
Grandes poetas já disseram que não se deve abusar da inspiração. Escrever é um trabalho como qualquer outro. Exige dedicação, prática, rotina e disciplina. Deve-se duvidar daquilo que é posto no papel como um jorro. É necessário que essa massa de palavras descanse, para evoluir e amadurecer feito uma mistura destinada a virar pão.
O eu lírico de João Cabral de Melo Neto fala do ferrageiro de Carmona que trava sua luta com o ferro, esquentando-o, dobrando-o e golpeando-o até formar algo inédito, desprovido de molde. Assim é o trabalho do escritor que lapida sua narrativa até que ela esteja enxuta, livre de gorduras, seca como as frases neorrealistas de Graciliano Ramos e Alberto Moravia. São artistas que tratavam a musa inspiradora com respeito, de maneira cortês. Talvez não seja o caso do poeta vivido por Javier Bardem em Mother!.
Aquela que inspira seus escritos, interpretada por Jennifer Lawrence, exige atenção, quer ficar sozinha com seu amor numa casa isolada. Mas o artista enche sua mente com conflitos humanos das mais variadas espécies. Apenas sua amada não basta para que componha um grande poema.
Ele quer compartilhar tudo e, acima de tudo, ser aclamado pelos leitores. É mais ou menos como diz Lila Cerullo, personagem de Elena Ferrante no livro História de quem foge e quem fica: "bons ou maus, todos os homens acham que, a cada ação deles, você deve colocá-los num altar como um São Jorge matando o dragão".
Depois de concebido, o trabalho é tirado dos braços de sua mãe e entregue ao público, que o despedaça e consome como bem entende. A musa geradora exige a posse de seu rebento, mas já é tarde demais. O poeta apenas a usou para conseguir o que queria. Após publicar sua poesia, não precisa mais da antiga inspiração e vai atrás de outra.
De fato, é um filme carregado de metáforas. Talvez uma das principais seja a relação entre o artista intocável, que não pode ser incomodado em seu processo criativo, e sua musa objetificada, a figura feminina que garante sossego, casa limpa, roupa lavada e comida quente a seu amado (como a Bertoleza de O cortiço), configurando o clássico exemplo do machismo que perdura até os dias de hoje numa sociedade que insiste em conservar valores patriarcais.
Mother! mostra que as musas inspiradoras ainda são abusadas como nos tempos de Homero e que poucos poetas possuem a consciência cabralina de não abusar de sua Calíope e saber que escrita é um trabalho sério, cujo objetivo principal não deveria ser o estrelato.