O nazismo é de esquerda. O IBGE não entende de estatística. O projeto GURI vai acabar. O projeto GURI não vai mais acabar. Temer dentro. Temer fora. Mas, e o PT?
Pra suportar ao noticiário dos últimos dias (ou dos últimos anos) no Brasil, só mesmo a arte. O cinema, por exemplo, costuma ser um refúgio. Em Araraquara, a boa programação do Cine Lupo apresentou os filmes da safra Oscar 2019. Foi ali que pude assistir num intervalo de poucas semanas obras como A Favorita, Guerra Fria e Infiltrado na Klan.
A mais tocante experiência cinematográfica dos últimos anos, no entanto, vem do Líbano. Cafarnaum, dirigido por Nadine Labaki, é cinema de gente grande. A sinopse não traduz à contento a imersão ao caos que as duas horas do filme proporciona. É preciso fôlego para suportar a saga do menino Zain, que trabalha para ajudar no sustento da família enquanto tenta proteger a irmã de 11 anos inevitavelmente oferecida em casamento ao primeiro pretendente.
O caos que o título sugere se traduz na plena desorganização urbana e social retratada na tela. A fome, os abusos e todas as formas de violência sem derramamento de sangue, nudez ou qualquer conotação apelativa. Está tudo justificado.
O filme se divide em duas partes. A primeira concentra a ação no núcleo de uma família desfeita. Na segunda parte, entra em cena o drama dos refugiados e a temática da segregação social, que dão novos contornos à trama. O filme, no entanto, não perde o ritmo.
Cafarnaum não tem (ainda bem) o verniz hollywoodiano de Quem Quer Ser Um Milionário, filme com o qual pode ser (mal) comparado, ou Cidade de Deus, de Fernando Meireles, com o qual também é possível estabelecer convergências.
As referências alcançam até mesmo Roma, vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro que teve o próprio Cafarnaum entre os concorrentes. No filme mexicano, dirigido por Alfonso Cuáron, a protagonista Cleo (Yalitza Aparicio) dá entrada num hospital acompanhada por uma de suas patroas. A empregada é atendida às pressas e fica à cargo da acompanhante o fornecimento de dados para o protocolo. A senhora, no entanto, desconhece a identidade da empregada e chora ao apontar apenas o primeiro nome. É como se só ali se desse conta do distanciamento imposto pela divisão de classes. Cleo circula pela casa, cuida das crianças, prepara as refeições e divide o mesmo espaço físico, mas não pertence àquela casa.
Já em Cafarnaum, ninguém sabe ao certo a idade do menino Zain, que dá nomes falsos às vezes para despistar possíveis riscos. Aprendeu desde cedo as regras para sobreviver em meio ao caos. O primeiro sorriso do garoto, como escreveu Murilo Reis aqui também no Portal Morada, não vai sair tão cedo da cabeça. É a redenção de alguém que ganha, depois de “matar um leão por dia” nas ruas, nos guetos, na prisão e nos tribunais, enfim, uma identidade. Zain sorri porque é gente pela primeira vez. E você certamente terá vontade de aplaudir essa pérola de Nadine Labaki.