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Notas sobre uma democracia esfacelada

"[...] considero Democracia em vertigem obra extremamente necessária e didática para entender o que Machado de Assis e Eça de Queirós já diziam lá atrás, final do século XIX"

1. Essa mania de enfiar literatura em tudo.

2. A certa altura de O primo Basílio, Luísa comemora o casamento arranjado com Jorge. “E sem o amar”, ela deixa escapar. Autor do romance, Eça de Queirós foi perito em apontar que as relações humanas sempre (ou quase) são pautadas em interesses nada nobres – dinheiro, poder e sexo, por exemplo.

3. No documentário Democracia em vertigem, Petra Costa (diretora) narra cena em que Dilma, Lula, Marisa Letícia e Temer caminham juntos, 1º de janeiro de 2011, dia da posse da primeira presidenta brasileira. O então vice-presidente tenta aparecer no close das câmeras, mãos inquietas. Um casamento arranjado, diz Petra. Todos sabemos como essa relação termina, cinco anos mais tarde.

4. Em outro momento, a narradora-diretora analisa forma e conteúdo do Congresso Nacional: arquitetura moderna que abriga políticos que só agem de acordo com seus interesses. Imediatamente, penso nos sonetos de Camões: forma fixa, métrica sofisticada, rimas proporcionalmente arranjadas que abrigam desconcertos insolúveis – amor é fogo que arde sem se ver, ferida que dói e não se sente, claro enigma que não se resolve.

5. Nos contos policiais de Edgar Allan Poe, acompanhamos investigações conduzidas por Dupin. O Chevalier elucida passo a passo, como na resolução de um problema de matemática, quem trucidou os corpos de mãe e filha e onde está importante documento roubado de influente político parisiense (ver “Assassinatos na Rua Morgue” e “A carta roubada”). Agora que sabemos o conteúdo de mensagens trocadas entre membros do alto escalão da Operação Lava-Jato (nesse ponto, documentário já desatualizado), é vergonhoso ver Dallagnol e Moro tentando explicar, com base em achismos e sem provas concretas, o envolvimento de Lula em esquema criminoso. Perto de Dupin, amadores.

6. Quando termina a sessão caseira, estou comovido. O depoimento de Gilberto Carvalho traduz mais ou menos o que penso: Lula e Dilma perderam a oportunidade de fazer a reforma que acabaria com a contribuição de grandes empresas nas campanhas eleitorais, de liquidar a hegemonia de famílias que controlam a mídia e a política no Brasil. Claro, depois do impeachment, que só aconteceu porque Dilma ameaçou mexer com os grandes, as perguntas que ficam são: como fazer isso? A corrupção, no Brasil, tem cura?

7. No Twitter, vi algumas pessoas dizendo que o documentário é desejo de filha de banqueiro limpar a barra da família. Antes de vê-lo, li algumas resenhas, a melhor delas escrita por Eduardo Escorel, na revista Piauí de junho. Para ele, há excessivas tomadas aéreas feitas com drone e visível tentativa de inocentar Dilma. De minha parte, por fazer leitura parecida com a da diretora sobre o que vem acontecendo desde 2013, considero Democracia em vertigem obra extremamente necessária e didática para entender o que Machado de Assis e Eça de Queirós já diziam lá atrás, final do século XIX.

8. Essa mania de enfiar literatura em tudo…

Luis Antônio
Luis Antônio
Jornalista. Formado em Ciências Sociais e Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Estudos Literários. Apresentador e editor do Jornal da Morada, da Rádio Morada FM 98,1
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