1. Há algumas semanas, ouvi um conhecido da faculdade dizer que a experiência numa sala de aula do ensino público não agregaria nada à sua vida. Ele, estudante de Letras, rato de biblioteca que optou por não obter licenciatura.
2. Ainda não superei o texto de Rubens Figueiredo publicado na Folha de S. Paulo de domingo. Até o momento, devo ter lido essa pequena peça literária pelo menos umas quatro vezes (essa mania de me deixar abalar pela literatura). No artigo (ensaio?), o escritor e tradutor dos russos (Tolstói, Dostoiévski, Babel) reflete sobre a falsa (hipócrita) ideia de meritocracia implementada num país cuja estrutura social é baseada no racismo, sobre as agruras e as alegrias de sua trajetória como professor da rede pública do Rio de Janeiro.
3. Figueiredo passou a maior parte dessa saga na docência do supletivo. Dos pequenos causos contados, o que mais me impactou foi o do aluno, cerca de 35 anos, que tinha extrema dificuldade com a leitura. Detentor de vasto conhecimento prático sobre construção civil, julgava-se burro por não conseguir decifrar de maneira fluente as palavras dispostas num pedaço de papel. Persistente, um dia se viu lendo.
4. Jamais conseguirei imprimir aqui a delicadeza e a humanidade presentes na crônica original. Prosa límpida e precisa, sem apelo a sentimentalismos, o autor constrói habilmente a trajetória daquele homem. Ao final, impossível não sentir a garganta fechar-se num nó cego.
5. No momento em que escrevo, é terça. Eduardo Bolsonaro disse que, se algo parecido com o que ocorreu no Chile se der por aqui, haverá repressão policial como nos tempos da ditadura (isso não foi dito, mas todos sabem que era a referência). Mais tarde, Jair Bolsonaro teve seu nome pela primeira vez associado ao assassinato de Marielle Franco.
6. Durante oficina ministrada em Araraquara no início do mês, Veronica Stigger (escritora) citou Viktor Chklovski para falar do estranhamento na obra de arte. O crítico literário soviético fazia parte de uma corrente (Formalismo Russo) que estudava o conjunto de procedimentos que um texto literário realiza para produzir o tal estranhamento da mensagem, ficando seu entendimento desconectado dos automatismos do cotidiano.
7. É o que sempre tento dizer para alunas e alunos que têm como meta passar no vestibular. Pensar a literatura como ferramenta de ampliação do universo particular, como uma lente que curaria a miopia causada pela rotina, como algo que desautomatiza nosso olhar e nos faz perceber que fora das redes sociais há pessoas que não sabem ler ou escrever porque foram obrigadas a abdicar dos livros para carregar caixotes e cuidar da casa de gente rica.
8. No domingo, o bacharel em Letras mencionado no primeiro tópico compartilhou o texto de Figueiredo em seu perfil numa rede social. Talvez, sem perceber, ele, intelectual, tenha sido vítima do estranhamento pregado por Chklovski. Com relação à prática em sala de aula, tomara que tenha mudado de ideia.
9. Por compartilhar suas memórias, obrigado, Rubens Figueiredo.