Como se tivessem sido capturadas por uma câmera fotográfica, duas mulheres labutam. Uma delas está sentada, o rosto marcado pela fadiga. A outra, de costas para quem a observa, peneira cereais ajoelhada sobre um grande tecido branco. Enquanto isso, um menino olha dentro de um móvel de madeira, algo parecido com uma cômoda. Nada é idealizado nesse cenário de paredes rústicas.
O título dessa cena é LES CRIBLEUSES DE BLÉ (peneiras de trigo, em tradução literal fornecida pelo nada confiável tradutor do Google), pintura de Gustave Courbet, artista francês reconhecido pela prática da estética realista. O que me atrai nessa imagem é justamente o fato de ela mostrar algo próximo da vida cotidiana e dos meros mortais que precisam pagar seus boletos e faturas.
Quem não nasceu em berço de ouro sabe que a vida não é fácil. Nem sempre as coisas saem como queremos. Quase nunca seremos aquilo que um dia sonhamos. A arte pode ser uma imitação poética desses fracassos. Há alguns meses, tenho lido e relido LAVANDERIA ANGEL’S, conto da estadunidense Lucia Berlin. Por cerca de cinco páginas, a narradora relata suas experiências, conforme o próprio título diz, em lavanderias, lugares frequentados por anônimos, alcoólatras em busca de salvação, existências invisíveis para quem se desloca pela cidade apenas de carro.
A tela de Courbet e o texto de Berlin me vieram à cabeça enquanto subiam os créditos de A VIDA INVISÍVEL, premiado filme brasileiro dirigido por Karim Aïnouz que está em cartaz no Cine Lupo (aliás, o amigo Luis Antonio publicou, neste mesmo PORTAL MORADA, bela crônica sobre a importância do funcionamento desse cinema em Araraquara). Na última segunda-feira, quando se acenderam as luzes, eu e as outras seis pessoas presentes na sessão, nocauteados que estávamos, demoramos um tanto para sair da sala 2.
Em texto publicado no site da revista QUATRO CINCO UM, Gabriel Feltran reflete sobre a violência que fez BACURAU, CORINGA e PARASITA serem sucessos de bilheteria. Segundo ele, essa brutalidade seria um resumo da desigualdade contemporânea que impacta diretamente seus possíveis espectadores. Em A VIDA INVISÍVEL, há um outro tipo agressão que, se não arranca dentes ou explode cabeças, também massacra. Trata-se da história de Eurídice Gusmão (Carol Duarte e Fernanda Montenegro), mulher que teve a chance de ter uma vida grandiosa dedicada à arte, mas, justamente por não ser homem, é relegada à invisibilidade, a uma existência cinzenta e ordinária, o mesmo destino aplicado à protagonista de LAVANDERIA ANGEL’S e às operárias de LES CRIBLEUSES DE BLÉ.
Em um mundo patriarcal, não há espaço para romantismos ou desfechos grandiosos. Talvez seja por isso que a Ancine, agência voltada para o cinema nacional que atualmente é conduzida por pessoas que não gostam da sétima arte, tenha vetado exibição do longa. Mostrar a crueldade de uma tradição defendida pelo corrente governo é fazer latejar a ferida.