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A contemplação do que realmente importa

"Sempre me emociono com a história do aluno que, desempenhando a função de caseiro, era capaz de erguer muros e de consertar qualquer maquinário. Porém, tinha grandes dificuldades com leitura."

Gostaria de emoldurar certos ensaios e colocá-los na parede da sala. É possível pensar esses textos a partir de reflexão feita por Julio Cortázar em “Alguns aspectos do conto”. O autor de O jogo da amarelinha compara as formas literárias breves à fotografia e escreve que, em ambos os casos, uma partícula da realidade é cingida, fagulha que amplia e transcende o cenário recortado pela câmera ou pelos olhos de quem narra. Assim, tanto o fotógrafo quanto o contista escolhem um acontecimento significativo, a síntese da vida, um momento fugaz e permanente, o tremor da água dentro do cristal.

Morte de um soldado republicano, foto capturada em 1936 por Robert Capa, é um exemplo disso. Ela contém o momento exato no qual um combatente espanhol é baleado. Trata-se da fugacidade mencionada por Cortázar, fração de segundo que, paralisada, recebe inúmeros significados e cujo alcance vai além do homem que desfalece — Capa teve a intuição de pinçar a circunstância concreta em que a vida se encerra.

Em literatura, claro, esse tipo de flagrante é elaborado com mais vagar, a partir da combinação de elementos expressivos de natureza verbal. O depoimento de Rubens Figueiredo publicado em 27 de outubro de 2019, na Folha de S. Paulo, funciona mais ou menos dessa maneira. Nesse relato, o tradutor de Tolstói fala sobre os 30 anos em que atuou como professor de língua portuguesa na rede estadual do Rio de Janeiro.

Sempre me emociono com a história do aluno que, desempenhando a função de caseiro, era capaz de erguer muros e de consertar qualquer maquinário. Porém, tinha grandes dificuldades com leitura. Munido de frases que evoluem sem pressa, Figueiredo narra a trajetória desse herói até o dia em que, aos 35 anos, ele aprende a ler. Assim como Robert Capa, o escritor brasileiro imortalizou momento único, uma grande vitória que estaria ameaçada pelo fechamento do colégio no qual trabalhava e pela consequente interrupção do programa de alfabetização de jovens e adultos.

Outra peça que está na categoria de textos fotográficos é “Inverno em Abruzzo”, de Natalia Ginzburg. Estruturado por sintaxe simples e luminosa, trata do período em que, exilada, a autora italiana viveu com a família no povoado que intitula a narrativa.

Ginzburg relembra quando esteve entre mulheres castigadas pelo trabalho braçal, pessoas que, antes de completarem trinta anos, já dispõem de poucos dentes e muitas cicatrizes. A narradora olha para o passado como se contemplasse um antigo retrato ressignificado pelo presente. Ao dobrar a esquina do último parágrafo, descobrimos ser aquela época similar a um sonho que contrasta com a terrível morte do marido da escritora pelas mãos do nazi-fascismo.

Rubens Figueiredo e Natalia Ginzburg, assim como Robert Capa, detêm a capacidade de congelar o que olhares pouco atentos não percebem. Seus escritos são um convite para a contemplação do que realmente importa. Talvez eu realmente os pendure na parede da sala.

 

Luis Antônio
Luis Antônio
Jornalista. Formado em Ciências Sociais e Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Estudos Literários. Apresentador e editor do Jornal da Morada, da Rádio Morada FM 98,1
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