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Precisamos falar sobre o lockdown de Araraquara sem paixões

Funcionou para reduzir os casos e as mortes? Sim. Foi na hora certa e pelo tempo necessário para conter realmente a doença? As evidências mostram que não.

O lockdown promovido pela Prefeitura de Araraquara em fevereiro de 2021 parece ter surtido efeito não só sobre a pandemia de covid-19 na cidade, mas também sobre a capacidade crítica e de análise de muita gente.

Sim, o prefeito Edinho Silva (PT) fez um lockdown sério na cidade (contra a vontade de muitos poderosos) e, sim, derrubou os indicadores da doença. Mas, esta leitura, apesar de correta e tão difundida, é insuficiente para entender os efeitos da medida adotada pelo município, carece ser aprofundada.

Qual o objetivo de um lockdown? Controlar a transmissão da doença a ponto de haver segurança para abertura das atividades econômicas, ou apenas impedir que as pessoas morram em casa sem atendimento?

Se a resposta for a primeira opção, o lockdown em Araraquara não funcionou. Se for a segunda, funcionou por um tempo, porque para ser duradouro deveriam controlar a transmissão da doença a ponto de haver segurança para abertura.

Três fatores comumente ignorados, mas que são fundamentais para analisar os efeitos do lockdown, são o momento em que a restrição total é determinada, o tempo de duração dela e o tamanho da queda dos indicadores que ela provoca, principalmente. Estudos da USP e da Fiocruz mostram com precisão os níveis seguros destes indicadores para uma eventual abertura das atividades econômicas sem risco para a população. Respeitemos a ciência, não é?

Dizer simplesmente que o lockdown feito em Araraquara “funcionou” porque “os números caíram” é ignorar estes três fatores. E são justamente eles que explicam o fato de a cidade estar vivendo nova onda, com crescimento dos casos, UTIs lotadas e filas para internação.

Vamos a eles:

 

Quando foi decretado

Qual o momento ideal para uma cidade fazer lockdown? Depende do objetivo a ser atingido com ele.

No dia 19 de fevereiro, dia da publicação do decreto do lockdown em Araraquara, que “fecharia a cidade” a partir do dia 21, os serviços de saúde públicos e privados da cidade já estavam colapsados com UTIs lotadas há cinco dias e enfermarias sem leitos há 15 dias.

Em 19 de fevereiro, a média de casos novos da doença na cidade era de 175 casos por dia. Em todo o ano de 2020, a maior média tinha sido de 57 casos diários, em dezembro.

Em 19 de fevereiro, havia 1257 doentes em quarentena em Araraquara. O pico deste indicador em 2020, tinha sido de 363.

Em todo o ano de 2020, foram 92 mortes por covid-19 na cidade. Somente de 1º de janeiro a 19 de fevereiro de 2021, já tinham sido 75 mortes, 51 delas só em fevereiro.

Portanto, do ponto de vista de quem, em 2021, ficou sem leito, adoeceu e vai ter sequelas, perdeu familiares e amigos, o lockdown demorou muito para ser feito.

 

Quanto tempo durou

O decreto do dia 19 de fevereiro determinava lockdown das 12h do dia 21 (domingo) às 23h59 do dia 23. Dois dias úteis e mais meio domingo.

No dia 23, com muita pressão dos empresários, mas com indicadores da doença ainda subindo, foi publicado novo decreto que estendeu parte das restrições até às 6h do dia 27, sábado. Porém, este mesmo decreto liberava atividades de delivery (com até 30% dos funcionários), mercados, mercearias, padarias, açougues e hortifruti, por exemplo.

Então, lockdown de verdade, com tudo fechado, somente com farmácia e hospital aberto, foi de 2 dias e meio. Depois, já tinha um monte de atividade funcionando e gente circulando na cidade, apesar de impostas sérias restrições. Não dava mais para chamar de lockdown.

Nenhum veículo de comunicação que eu li questionou isso e muitos informaram quantidade de dias de lockdown sem conexão com a realidade ou mesmo com os decretos (vi falarem 10, 14 e 15 dias em lugares diferentes. Não sei de onde tiraram a informação).

 

Tamanho da queda

Para um debate frutífero sobre o lockdown ter funcionado ou não, as paixões têm que ser deixadas de lado, para que o assunto possa trazer reflexão e adequação das ações e não munição para um lado ou outro do espectro político.

Se olharmos os indicadores da pandemia em Araraquara quando o lockdown foi decretado e o comportamento deles nas semanas seguintes, fica óbvio que a medida “funcionou”, porque os números despencaram, com exceção da ocupação de UTIs. Os dados estão aqui.

Mas, vamos falar primeiro dos outros indicadores, depois voltamos à ocupação de UTIs.

Os principais indicadores (casos novos, ocupação de leitos, doentes em quarentena) estavam altíssimos quando foi decretado o lockdown (como já mostrado acima) e caíram após a medida.

Mas, mesmo depois da queda provocada pelo lockdown, os principais indicadores estabilizaram em média mais alta do que os piores momentos de 2020.

Então, para dizer que o lockdown funcionou porque os números caíram, é preciso estabelecer a que níveis caíram, não basta dizer somente o percentual da queda. Esse percentual fica bom em releases da Prefeitura: “Mortes caem 66% após lockdown”. Ok, ocorre que, no pico, a média foi de 6 mortos por dia e, depois, estabilizou em 2, mas em 2020, não passou de 1. Ou seja, hoje morre o dobro do que morria antes. O lockdown funcionou, portanto, para evitar mortes sem atendimento hospitalar, mas não para conter a doença.

Mas, então, isso prova que o lockdown não serve para nada? De jeito nenhum, muito pelo contrário. O lockdown, no momento em que foi feito, como foi feito e pelo tempo que foi feito em Araraquara, impediu que a cidade empilhasse mortos nas calçadas e quebrou a curva ascendente de progressão geométrica que todos os indicadores mostravam naquele momento. A questão é que o momento pode ter sido tarde e o tempo pode ter sido pouco para que o resultado fosse a verdadeira contenção da doença a um nível que fosse seguro reabrir escolas, bares, cinemas, academias e demais atividades.

 

Interesses econômicos

Estudando os números e acompanhando as decisões políticas, é fácil entender a estratégia adotada pela Prefeitura: manter as atividades econômicas abertas enquanto houver leitos.

A determinação de que são necessários 30% dos testes positivos entre sintomáticos ou 20% do total de testes como única forma de medir a necessidade de um novo lockdown na cidade, conforme determina o mais recente decreto municipal, deixa claríssima esta estratégia.

Como a cidade tem feito de 600 a 1 mil testes diários nos últimos dias, teríamos que ter entre 180 e 300 casos novos por dia para um novo lockdown e, como já mostrado, a maior média em 2020 foi de 57 casos. Então, 180, 300 casos é muita coisa, adoece muita gente, traz sequelas e mata.

Se a doença mata, hoje, 3% dos contaminados, não podemos esperar ter 300 casos por dia para fechar a cidade. Fazer isso para poder manter atividades econômicas funcionando é compactuar com a morte de 2 ou 3 pessoas todos os dias em uma cidade com 230 mil habitantes por uma doença evitável.

 

Leitos de UTI

O único indicador que não caiu após o lockdown em Araraquara foi o da ocupação de leitos de UTI. Não caiu como os demais, mas parou de crescer, estabilizou lá no alto, com média de 85% de ocupação.

E este indicador mudou ao longo do tempo não só pela ocupação, mas também pela oferta de leitos, que aumentou conforme a pandemia avançava. Fomos de 58 leitos em fevereiro, quando registrado o primeiro colapso, para os 96 que tínhamos no dia 24 de maio.

A taxa de ocupação no dia 24 de maio é de 96%, com 91 pacientes internados, sendo a maioria (52) de outros municípios transferidos para Araraquara.

Este é um dos fatores que explica o fato de a taxa de ocupação de UTI não ter caído após o lockdown, o fato de a estrutura hospitalar de Araraquara estar sendo utilizada por outros municípios.

E outro é que há limites intransponíveis para a criação de novos leitos de UTI, como equipe treinada e insumos. Já faltam medicamentos para intubação na cidade e, por este motivo, a Santa Casa comunicou que não vai mais atender novos casos de covid-19.

O impacto disso foi imediato: dia 26 de maio, segundo dados do boletim epidemiológico diário da Prefeitura de Araraquara, o número de leitos UTI disponíveis na cidade caiu quase 5%, de 96 para 92 (são 87 internados e taxa de ocupação de 95%).

 

Resultado

Com tudo isso, é possível olhar pelo lado do gestor, que comemora o fato de não termos empilhado corpos nas calçadas e nem nas casas sem atendimento médico, e isso é ótimo.

Mas, nós somos as pessoas que se contaminam e morrem, não somos gestores. Então, para nós, que assistimos a tudo, o lado humano é que deveria ser levado em conta e a prioridade deveria ser o controle efetivo da pandemia, pois nenhuma morte é aceitável. Caso contrário, cabe a pergunta: quantas e quais pessoas podem morrer para as atividades econômicas poderem abrir?

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