Sorriso

“Aquele jeito de olhar me deixou desesperado. Não sabia mais o que fazer. Ele ficava perguntando se era isso mesmo que eu queria.”

“Minha nossa. Que cara é essa? Você tá doente?”

“Semana passada, um freguês estranho apareceu aqui no sebo.”

“Estranho como?”

“Quando fui cobrar o livro que ele pediu, ele perguntou se era isso mesmo que eu queria.”

“Mas e aí? Ficou nisso?”

“Ele ficou me olhando com uma cara estranha. Pode parecer estúpido isso que vou dizer, mas era um sorriso de ódio.”

“Como é possível sorrir com ódio? Acho que você tá lendo muito Fernando Pessoa.”

“Pois é a única definição que consigo dar para aquele rosto.”

“Qual livro ele queria levar?”

“Um exemplar de Feliz ano novo, do Rubem Fonseca, uma das poucas edições de 1975 que escaparam da censura.”

“Caramba. Quanto custa um trem desses?”

“Eu estava pedindo mil e quinhentos reais.”

“E ele pagou?”

“Aquele jeito de olhar me deixou desesperado. Não sabia mais o que fazer. Ele ficava perguntando se era isso mesmo que eu queria. Pra dar um fim naquilo, disse que ele poderia levar o livro sem pagar nada.”

“E ele levou?”

“Quando eu disse isso, ele balançou a cabeça, tirou um maço de notas do bolso e deixou no balcão. Disse que, se nos encontrássemos mais uma vez algum dia, esperava que eu tivesse uma resposta. Pegou o livro e saiu. Quando fui contar o dinheiro, tinha o dobro do valor do livro.”

“Caramba! Você saiu no lucro!”

“Lucro? Que lucro? Não consigo mais dormir. Ontem, peguei um pouco daquele dinheiro e comprei isso.”

“Você tá maluco? Um 38? Você nunca pegou numa arma! Se o cara parece tão perigoso como você falou, é bem capaz de tomar isso da sua mão e enfiar no seu cu!”

“Não é para usar nele, mas em mim. Não suportaria olhar novamente para aquele sorriso.”

Luis Antônio
Luis Antônio
Jornalista. Formado em Ciências Sociais e Letras pela Universidade Estadual Paulista (UNESP). Mestre em Estudos Literários. Apresentador e editor do Jornal da Morada, da Rádio Morada FM 98,1
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