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Abuso e gravidez: quando a lei não é suficiente para proteger a inocência

"Meninas sofrem estupros e violências desde que essas terras foram invadidas há mais de 500 anos. Primeiro, as meninas indígenas, depois as meninas negras. As meninas brancas também não escaparam de tal saga"

Uma menina foi estuprada. Aliás, há quatro anos essa menina vinha sendo constantemente estuprada.

Aos seis anos perdeu a inocência, aos dez anos está gravida.

A notícia repercute. O país todo opina. Como se isso fosse novidade. Como se não acontecesse inúmeras vezes por dia, com milhares de outras crianças.

Silêncio…

Aborto? Não! Nunca! Impossível! – brada uma ala da população.

O aborto é um sacrifício de um ser inocente.

O estupro não?

A justiça demora em conceder a autorização para um aborto legal. Onde está guardado o ECA? O hospital se nega a proceder o aborto. Cadê o ECA??? Pessoas protestam na porta do referido hospital. Por se sentirem tocados por toda violência que a criança viveu durante esses quatro anos? Todo seu medo e dor? Não. Pasmem! Contra a criança e sua tia, tentando impedir o aborto.

As redes sociais transbordam expectativas. Destilam ódio fundamentalista. Ondas de mensagens são enviadas. Uns a favor, outros contra. Todos querendo participar da “nova” discussão do momento. Pois, a moda é essa, opinar sobre a novidade, antes que a notícia esfrie.

Por alguns dias a discussão se mantem em alta, afinal a demora está sendo excruciante somente para a criança. Para os demais é somente a onda do momento.

Assim, alguns estupefatos com a ocorrência de semelhante evento questionam: violência contra a criança e dentro da própria casa? Mas, a criança não deveria ser mantida protegida no interior de uma família? Não viram que isso estava acontecendo com ela?

Ah, você não sabia? Foi um membro da própria família que cometeu o crime.

Porque então ela não pediu ajuda?

Ela deve ter seduzido ele, disseram…

 

Sentindo-me sacudida por tantas emoções coloco-me a escrever esse texto, buscando ponderar, de maneira objetiva, acerca do evento que provocou uma comoção nacional no início do mês de agosto de 2020. Hoje, final do mesmo mês, a notícia já sumiu das mídias. Já não traz comoção.

Noticia velha.

Sim, essa notícia é velha. Muito velha…

Meninas sofrem estupros e violências desde que essas terras foram invadidas há mais de 500 anos. Primeiro, as meninas indígenas, depois as meninas negras. As meninas brancas também não escaparam de tal saga. Mesmo que a violência ocorresse escondida sob o véu da família.

Corpos femininos, pueris, inocentes. Causam o desejo de domínio, de posse. Assim, vem sendo construído, durante a nossa história, um imaginário de masculinidade no qual o corpo da mulher, mesmo que ainda seja menina, sirva somente para seu desfrute.

Em 2018, tivemos um dos mais altos índices de denúncias de abusos sexuais contra crianças e adolescentes, 32.000 casos. Isso mesmo. Trinta e dois mil casos foram denunciados. Quantos terão sido invisibilizados?

Destes casos, 92% das violências sexuais foram contra meninas.

E nesse ano, com a pandemia? A expectativa é de que os números sejam ainda mais elevados, afinal crescem, significativamente, o número de denúncias de feminicídios e violências domésticas.

A Lei 12.015/09 prevê como crime cometer conjunção carnal ou ato libidinoso contra menores de 14 anos. Dessa forma, a gravidez nunca deveria acontecer e deve ser considerado inimaginável que essa gravidez siga seu curso se a considerarmos prova da violência sofrida.

Ao contrário do que se pensa, a gravidez na faixa dos 10 aos 14 anos é a que mais cresceu no Brasil, de acordo com os dados apresentados no relatório do Grupo de Trabalho da Sociedade Civil sobre a implementação da Agenda 2030 de Desenvolvimento Sustentável para o Brasil.

O estupro é uma violação do direito da criança. Manter essa gravidez seria proporcionar a ela uma violação tão terrível como o estupro que a causou. O corpo da menina não está pronto para receber essa gestação, seja biológica ou psicologicamente. No entanto, ocorreram discussões sobre a legalidade ou não dessa prática, quando a lei determina que, quando a gravidez oferece risco à vida da mulher ou é fruto de uma violência infligida a ela, sua interrupção torna-se legal.

Precisamos, na verdade, falar de uma questão que se tornou mais urgente. Qual é a nossa responsabilidade em tudo isso?

Podem me perguntar: como acha que tenho alguma responsabilidade no que aconteceu com essa menina, se estou em casa, cuidando de meus filhos, cuidando da minha vida, não fazendo mal a ninguém e pagando meus impostos?

Tenho que te dizer, somos todos responsáveis pelo que não dizemos a todas as crianças. Por não reafirmarmos a importância da educação sexual nas escolas para que meninas e meninos saibam reconhecer uma violência.

Durante quatro anos essa menina sofreu calada a violência sexual. Medo, vergonha, insegurança se mesclavam em seu interior e ninguém percebeu. Como sociedade, não estamos preparados para notar os indícios manifestados pelo comportamento de uma criança que está sendo vítima de abuso. Ninguém quer falar sobre sexualidade. Porém, temos que nos conscientizar que cada criança vítima de violência é nossa responsabilidade.

Como sociedade temos nos recusado a reconhecer a importância da educação sexual nas escolas como forma de prevenir a violência sexual. Nos últimos anos temos sido vitimas de um ataque moralista que impede que milhares de crianças recebam informações, que são seu direito, sobre o seu corpo e o que pode ou não ser tocado. Em caso de desconforto, que busquem ajuda. Relatem o que vem ocorrendo.

São filhos e filhas, netos e netas, crianças cidadãs que devem ter seus direitos garantidos. Falando a partir desse lugar de cidadania habitado pela infância é que a criança deve ser respeitada, tendo acesso a conteúdos produzidos de forma adequada e científica.

Mas, podem alguns dizer, a família que deve ser a responsável por falar de sexualidade com a criança. Para esses tenho que responder, vocês sabiam que é no interior das famílias que ocorre a maioria dos abusos sexuais sofridos por crianças e adolescentes?

Falar de sexualidade na escola não é ensinar sexo. Falar de sexualidade, dentro do contexto das escolas, é oferecer às crianças acesso a um conteúdo adequado que vai lhe proporcionar oportunidade para aprender sobre consentimento, privacidade, violência, cuidado e proteção. Vai fazer com que a criança reconheça quando está sendo vitima de violência e saiba pedir ajuda.

Depois de todo o exposto gostaria de pontuar que a educação sexual se apresenta como uma das mais potentes armas para prevenir a violência sexual contra crianças e adolescentes. Proibir a sua implantação nas escolas é persistir com uma cultura de estupros que vitimiza milhares de crianças.

Ana Magnani

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