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Anotações sobre traumas e o caso do Fofão da Augusta

"Araraquara também possui esquinas e ruas que, à noite, são habitadas por viventes colocados à margem de qualquer benesse"

Não superamos os traumas de nossas vidas, apenas aprendemos a conviver com eles.

Todos nós, sentados em torno duma mesa de plástico do Café Paradiso, em Batatais, bebendo as últimas cervejas de um domingo abafado, concordamos com essa sentença.

Se Peter Walsh, personagem do romance "Mrs. Dalloway", de Virginia Woolf, estivesse ali conosco, certamente faria coro à afirmação de que decepções, às vezes, não morrem.

Walsh passou muitos anos na Índia, sem ter nenhum contato com seus velhos amigos londrinos. Quando retorna à capital inglesa e reencontra Clarissa Dalloway, descobre que o tempo vivido em terras estrangeiras não foi suficiente para apagar a tristeza de não ter se casado com sua amada.

Mas, ora, tudo bem, quem é que nunca sofreu por amor? Até onde se sabe, esse tipo de dor não mata. O problema é quando os fantasmas do inconsciente resolvem atacar o cérebro que os abriga. Basta que o cadeado seja aberto uma única vez para que haja uma rebelião.

É o caso de Jesse Burlingame. No filme "Jogo perigoso", adaptado de um conto de Stephen King, ela e Greg, seu marido, resolvem apimentar o relacionamento com algemas, isolados em um tipo de rancho.

Claro que, quando se trata de King, sempre há uma cilada dos demônios: Greg tem um fulminante ataque cardíaco e Jesse fica algemada à cabeceira da cama. Ninguém por perto. A oportunidade que seus fantasmas desejavam para que traumas de infância viessem à superfície.

A questão é: o que machuca mais? As algemas que prendem a circulação de suas veias ou uma verdade que enoja o mais frio dos observadores?

Nem sempre as aflições físicas representam os piores martírios. Acho que aqueles que estavam presentes no Café Paradiso também concordariam com isso.

 

***

 

Literatura não tem trilha sonora. Caso tivesse, as canções de Nelson Gonçalves certamente embalariam as narrativas escritas por Marçal Aquino. O cantor sabia representar com sua voz impossibilidades amorosas, situações frequentes na produção contística e romanesca do escritor nascido em Amparo (SP).

A vida real talvez tenha, em algumas ocasiões, um pano de fundo musical. Dá-lhe Nelson Gonçalves: no tango “Estação da Luz”, ele canta para existências sofridas que vagam pelos arredores do famoso ponto turístico paulistano.

Situação particular que reflete para o universal.

Araraquara também possui esquinas e ruas que, à noite, são habitadas por viventes colocados à margem de qualquer benesse.

Poucos se perguntam sobre o que há por trás dos corpos expostos e objetificados, da maquiagem pesada e do collant. O jornalista Chico Felitti se perguntou.

Há alguns dias, publicou no “BuzzFeed Brasil” extensa matéria investigativa a respeito duma personagem que poderia perfeitamente fazer parte da realidade musicada por Gonçalves. Felitti foi além do apelido pelo qual Ricardo Corrêa da Silva é conhecido, Fofão da Augusta, e descobriu um homem que entrou por veredas tortas, sofreu o diabo por causa de sua orientação sexual, ejetou-se de Araraquara e foi parar na gigante e indiferente São Paulo, onde se tornou um invisível que todo mundo vê, mas não compreende.

Além da história catártica, o que chama a atenção é a qualidade do artigo. Depois de iniciada, é quase impossível interromper a leitura da narrativa elaborada pelo repórter.

Um texto sensível, literário, humano e obrigatório.

Murilo Reis

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