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Pandemia não acaba por decreto nem por vontade da imprensa

Não adianta fazer lei ou manipular os números, a covid-19 está descontrolada em Araraquara; ao fechar os olhos para as evidências científicas, governo e mídia comercial colaboram com a desinformação sobre a doença, com consequências nefastas

Você deve ter ouvido nos últimos dias que a ocupação de leitos por covid-19 está caindo em Araraquara. Também deve estar sabendo que as escolas estão abertas, que já pode fazer encontros familiares com até 20 pessoas, frequentar academia e ir a bares e restaurantes com os amigos, de acordo com decreto assinado pelo prefeito Edinho Silva (PT), publicado nesta quarta-feira, dia 14 de julho de 2021. Tudo isso é verdade, mas não se engane: não há segurança sanitária em Araraquara.

O problema destas informações corretas é que elas são enganosas, dão a sensação de “retorno à normalidade” para a população, dão a clara impressão de que o fim da pandemia está próximo, quando, na realidade, os fatos mostram exatamente o contrário. Todos os indicadores da pandemia na cidade hoje são piores do que os piores momentos de 2020. Eles caíram em relação aos picos de 2021, mas ainda são elevadíssimos e mostram claro descontrole da transmissão da covid-19.

Em 2020, havia 56 leitos de UTI em Araraquara e a ocupação máxima foi de 36%, com 20 pacientes internados. Hoje, são 113 leitos, com ocupação de 57%, com 64 internados. Já esteve pior, perto do colapso, mas podemos dizer que temos mais segurança hoje?

Ao tentar acabar com a pandemia por decreto, abrindo escolas, bares e demais atividades, o governo de Araraquara vai conseguir o resultado justamente oposto: aumentar ainda mais a já descontrolada transmissão de covid-19 na cidade e o número de mortos pela doença. E não se trata de mau agouro, é ciência, é matemática, é estatística, é compreensão do comportamento de uma pandemia e de um vírus.

E o governo sabe disso, sabe que a contaminação vai aumentar, porque é exatamente o mesmo raciocínio utilizado para justificar o lockdown: reduzir a circulação de pessoas reduz a transmissão do vírus. Aumentar a circulação, portanto, aumenta a transmissão. Simples assim.

A decisão do governo Edinho, então, é friamente calculada para atender aos interesses econômicos: muitas pessoas vão ficar doentes e muitas vão morrer para que escolas e demais atividades possam abrir, desde que não haja superlotação nos hospitais. É o que já está acontecendo: você está sendo exposto ao risco de morte diariamente porque, se adoecer, tem leitos disponíveis para você morrer nos hospitais.

Assim como a média de 1,2 mil mortes diárias no Brasil já não comove mais a opinião pública, as vidas perdidas para a covid-19 em Araraquara parecem também já não ter mais valor. Nos últimos 40 dias, registraram na cidade o mesmo número de mortos por covid-19 ocorridos em todo o ano de 2020. Mas, a notícia que sai na imprensa é que a ocupação de leitos caiu.

Sem contextualizar os números, sem explicar muito bem o que está sendo dito aos espectadores, a imprensa colabora com a desinformação sobre a doença e seus riscos, ao invés de informar, e, consequentemente, aumenta a falsa sensação de segurança entre as pessoas, que resulta em menos cuidados preventivos e mais contaminação. A responsabilidade dos veículos de comunicação é enorme.

O ano de 2020 foi terrível, muita gente não acreditava que 2021 poderia ser pior. Agora, no meio do ano, com todos os indicadores da doença na cidade muito piores do que nos piores momentos de 2020, como é possível ouvir da imprensa que estamos em situação “melhor”, que os números atuais demonstram segurança para qualquer tipo de reabertura presencial?

Cabe à imprensa confrontar as decisões do poder público, cobrar explicações. Mas, o que vemos é uma submissão e uma aceitação dos discursos oficiais sem questionamento. A Prefeitura nunca mostrou sequer um estudo científico ou mesmo evidências que comprovem que há segurança para reabertura presencial de qualquer atividade e jamais foi questionada por isso.

Os anunciantes, que mantêm as empresas jornalísticas com propagandas, estão alucinados pelo retorno da tal “normalidade”. É compreensível. Porém, o jornalismo não pode se pautar pelos interesses econômicos em detrimento do interesse público.

As consequências desta falsa mensagem de normalidade, atendendo interesses que só podemos supor, são previsíveis e aterrorizantes: mais adoecimentos, mais sequelas e mais mortes evitáveis.

Como conseguem dormir, sabendo disso, fazendo o que fazem?

Raphael Pena

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