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Não tão competente quanto o publicitário das lâminas de barbear

"Para enxergar os mecanismos que movimentam as relações humanas, há poucos dispositivos tão eficientes como a arte literária"

Acho que uma das coisas que mais me atraem na profissão de professor é a possibilidade de fazer pontes entre a Literatura e assuntos que fazem parte do cotidiano. Quando faço esse movimento, talvez esteja tentando provar que ler livros e consumir o máximo de cultura possível são boas maneiras de alcançar o mínimo de senso crítico num momento em que dois dos principais postulantes à vaga de presidente da República são totalmente avessos ao ensino e à disseminação do conhecimento.

A tarefa de converter infiéis à religião composta por divindades como Clarice Lispector e Machado de Assis torna-se ainda mais estimulante (inglória, às vezes) quando há aquele discente mais assertivo e sincero que resolve confessar todo o seu ódio por essa vertente artística.

Sim, caras alunas e caros alunos de cursinho ou Ensino Médio: Literatura não é somente matéria escolar, mas um tipo de arte, assim como o cinema, a música, a pintura e a fotografia – e, pasmem: é possível fazer pontes entre todos eles, que podem constituir infinitos complexos viários de conhecimento, úteis não somente numa sala de aula, mas também numa mesa de bar depois de algumas (ou várias) cervejas.

Prova de que as tão odiadas estéticas literárias podem nos ajudar a entender o mundo esteve aí, durante a Copa do Mundo.

Sugiro que pensemos na única rede televisiva (aberta) que ficou responsável pela transmissão do torneio futebolístico entre nações. Se fizermos um esforço, perceberemos que havia pouca diferença entre as reportagens ufanistas de Tino Marcos e Alex Escobar e as propagandas do Itaú e da Vivo.

Taí. O romântico José de Alencar já fazia isso muito bem lá pela metade do século XIX. Em livros como Iracema, os cenários são maravilhosamente exuberantes. É tudo tão idealizado que foi até possível imaginar um romance entre uma nativa e um colonizador.

A idealização promovida por Galvão Bueno e seus amigos foi mais ou menos pelo mesmo caminho. O esquete do professor Adenor, se não era perfeito, mostrava-se bom o suficiente para garantir o hexa. Tinha-se os melhores jogadores do mundo em cada uma das posições. Dizer que seleções como a da França possuíam algum tipo de favoritismo era estratégia da imprensa internacional para desmoralizar o intocável selecionado da CBF.

O time da camisa amarela chegou às quartas de final em plena evolução. Quem é que poderia segurá-lo? Somente a seleção belga travestida de Realismo, aquela literatura em forma de tapa na cara que nos faz acordar para a realidade e por os pés no chão.

O futebol, hoje, é globalizado. Todos têm acesso à mesma informação, aos mesmos métodos estratégicos de marcação alta ou contra ataque fulminante, ao mesmo tipo de preparação física que exige o máximo da musculatura dos atletas. Não é mais possível (talvez nunca tenha sido) ganhar um campeonato de pesado quilate com um protagonista que parece mais preocupado com o corte de cabelo.

Taí. Lá no último quarto do século XIX, um certo Bruxo do Cosme Velho – vulgo Machado de Assis – já dizia a nós, leitores desinteressados por leituras profundas, que o real é sempre mais complexo. Com seu "Memórias póstumas de Brás Cubas“, mostrou que o ser humano é mesquinho, que as relações humanas são baseadas em interesses obscuros, como os de certo publicitário que enxergou a chacota mundial aplicada ao maior craque brasileiro da atualidade como oportunidade de promover campanha de grande visibilidade para a empresa em que trabalha. Claro, tudo combinado mediante avantajado acerto financeiro.

Para enxergar os mecanismos que movimentam as relações humanas, há poucos dispositivos tão eficientes como a arte literária.

Talvez já tenha dado para perceber, cara aluna e caro aluno: não sou tão competente quanto o publicitário das lâminas de barbear, mas também faço propaganda.

Murilo Reis

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