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O baixo de Harris

[... ao rolar no chão da sala, sentindo-se surrado pelo baixo de Harris, teve uma daquelas sensações que tinham se perdido lá atrás, quando, adolescente, chegava em casa da escola e só queria ser desconectado do mundo pelo seu discman.]

Eduardo chegou com novidades para nosso café vespertino ocasional no Delicatesse – sempre que nossas raras janelas de aulas coincidem, combinamos essa resenha no estabelecimento do Ademir.

Ele chegou dizendo (depois de pedir um café e um pão de queijo) que já havia se esquecido de como é reservar um tempo para somente ouvir música. Rememorou uma época em que ficava no seu quarto apenas fazendo isso, acompanhando as letras no encarte do CD.

Depois que aderiu ao Spotify, confessou nunca mais ter ouvido um álbum inteiro. A ansiedade de chegar rápido não se sabe aonde fez com que se tornasse um impaciente que não sabe curtir uma faixa porque já está pensando na seguinte.

Para tentar colocar um freio nisso, tomou a decisão de adquirir um equipamento destinado principalmente à reprodução musical. Há tempos estava limitado aos fones de ouvido conectados no celular.

Som montado, resolveu que ouviria um álbum inteiro do Iron Maiden – Eduardo diz enquadrar-se na categoria (eu nem sabia que ela existia) daqueles que gostam de uma música ou outra da banda.

Escolheu "The number of the beast". Ele não tem o disco físico, então utilizou o Bluetooth, uma das maravilhas dessa era wireless. Disse ter prometido a si mesmo que faria de tudo para não se perder em possíveis digressões propiciadas por todo e qualquer celular.

Segundo ele, o disco parece seguir uma curva crescente que começa a decolar na segunda música, "Children of the damned" , e atinge seu ápice na fenomenal "22 Acacia Avenue".

No metal, talvez o elemento que mais apareça seja a guitarra, responsável por fazer com que pessoas que nunca empunharam o instrumento simulem os movimentos exercidos por caras como Jimi Hendrix. Em vez de imitar os riffs de Dave Murray e Adrian Smith, Eduardo relatou ter feito algo impensável: quando deu por si, estava rolando no chão, pirando nas sequências de baixo de Steve Harris. O realismo foi tanto que começou a sentir cãibras na mão direita, a que dedilhava as quatro cordas imaginárias, enquanto a esquerda fazia escalas e notas impossíveis de serem identificadas no braço do instrumento invisível. Repetiu a música cinco vezes, até que seus dedos não conseguissem mais se movimentar.

Dando uma última mordida em seu pão de queijo, Eduardo disse que, depois que a última música foi tocada, lembrou-se de um texto que escrevi aqui, neste mesmo blog, sobre experiências plenas. Ele acredita que, ao rolar no chão da sala, sentindo-se surrado pelo baixo de Harris, teve uma daquelas sensações que tinham se perdido lá atrás, quando, adolescente, chegava em casa da escola e só queria ser desconectado do mundo pelo seu discman.

Inevitável dizer que, além de ter ficado feliz por ele, senti-me recompensado pela referência ao texto.

Murilo Reis

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